A edição do conto de fada, tal como o conhecemos hoje, surge na França de fins do século XVII sob iniciativa de Charles Perrault(1628-1703). Ao contrário do que possa ser pensado, Perrault não criou as narrativas de seus contos, mas as editou para que estas se adequassem à audiência da corte do rei Luís XIV(1638-1715). Foram as narrativas folclóricas contadas pelos camponeses, governantas e serventes que forneceram a matéria-prima para estes contos. Apesar do distanciamento da camada popular e do desprezo pela sua cultura, a classe nobre conhecia tais narrativas através do inevitável contato por meio do comércio ou pela presença das governantas e outros serviçais em suas residências. Após coletar tais narrativas, Charles Perrault eliminou o quanto pôde as passagens obscenas ou repugnantes que continham incesto, sexo grupal e canibalismo, para manter o seu apelo literário junto aos salões letrados parisienses. Assim, veio a público as “Histórias ou contos do tempo passado, com suas moralidades: Contos de Mãe Gansa”(1697), dando forma editorial para “A Bela Adormecida no Bosque”, “Chapeuzinho Vermelho”, “O Gato de Botas”, “As Fadas”, “A Gata Borralheira”, “Henrique do Topete” e “O Pequeno Polegar”. Portanto, antes de ter sido voltado para as crianças, o conto de fada foi originalmente criado tendo-se em mente os leitores adultos.(COELHO, 1997: p.35)
Dois fatores principais podem ser apontados para ajudar a esclarecer a transferência dos contos de fadas do universo adulto para o infantil. O primeiro é que, até o século XVII, a criança não era percebida como um ser socialmente distinto do adulto. Ela compartilhava com os adultos o mesmo tipo de roupa, os cômodos, o trabalho e também os ambientes sociais.(SHAVIT, 1999:p.317) Assim, circulando entre adultos, as crianças entravam em contato com os contos de fadas e invariavelmente se sentiam atraídas para o seu universo imaginativo. Cabe destacar também o papel-chave que as governantas, vindas da camada popular, desempenharam nesse processo ao contarem as narrativas folclóricas para os filhos dos nobres que ficavam aos seus cuidados. O exemplo desta importância está na capa da primeira edição de “Contos da Mãe Gansa”, em que Perrault mostra uma senhora idosa contando estórias para crianças ao pé da lareira.
A partir de meados do século XVII – e gradativamente até o século XIX –, a Revolução Industrial, a diminuição da mortalidade infantil e o aumento da expectativa de vida contribuíram para o desenvolvimento da noção social de infância. Uma vez configurada socialmente a criança, a Igreja, os moralistas e os pedagogos perceberam o potencial educativo e disciplinador dos contos. Aqui reside o segundo ponto da ligação das crianças com os contos de fadas: a exemplaridade. Em todos estas estórias havia a intenção de se transmitir determinados valores ou padrões a serem respeitados pela comunidade ou incorporados pelo comportamento de cada indivíduo. É por esta razão que até hoje se vê o conto de fada mais como um instrumento pedagógico do que como uma arte literária. Dentre os muitos valores transmitidos, aqueles relacionados à noção de pertencimento social ocuparam lugar de destaque, o que é facilmente exemplificado através do conto de fada “Chapeuzinho Vermelho”.
“No que você pensa quando vê alguém de vermelho carregando um cesto?” (WILSON, 1993: p. 271), instiga a escritora canadense Margaret Atwood ao referir-se à ilustração da capa de seu romance “A história da Aia’(1985), em que se vê uma figura feminina com vestido vermelho carregando uma cesta. Efetivamente, a estória da menina que carrega uma cesta com comida para a casa da avó e encontra o lobo mal enraizou-se na cultura ocidental, dispensando qualquer apresentação. No entanto, não se pode esquecer que a versão literária mais conhecida atualmente deste conto de fada é a dos irmãos Grimm, publicada em “Contos da infância e do lar”(1813-15). Diferentemene do conto de Perrault, que termina com Chapeuzinho Vermelho sendo devorada pelo lobo, a estória dos irmãos Grimm acrescenta a figura de um caçador que resgata, intactas, Chapeuzinho e a avó da barriga do lobo. Apesar dessas diferenças, ambos os contos são prioritariamente lidos como um alerta para as crianças sobre as conseqüências de desobedecerem às ordens dos pais. No entanto, mais importante do que as particularidades entre tais versões, é o fato de que, ao contrário de outros contos de fadas cujas raízes folclóricas se perdem nas brumas do tempo, “Chapeuzinho Vermelho” apresenta elementos que permitem pensar sua genealogia. O lobo é a chave para se perceber em “Chapeuzinho Vermelho” um discurso legitimador da integração social.
Diferentemente de outros vilões dos contos de fadas que são ligados ao mágico (bruxas, ogros, trolls, gigantes e duendes), o lobo que encontra Chapeuzinho no meio da floresta é uma fera real. Portanto, lugar do bestial ou da transgressão, a floresta era tida como a habitação dos seres banidos da companhia humana. Nesse sentido, “Chapeuzinho Vermelho” subverte a atmosfera de fantasia dos contos de fadas, sugerindo que a estória pode ter se originado relativamente tarde (na Idade Média), como um conto admonitório que advertia as pessoas para os perigos da floresta, incluindo aí seus predadores, e da importância de se manter a comunidade unida, especialmente no inverno, quando a escassez de comida levava os lobos a atacarem com mais freqüência os camponeses. Como explica Paul Barber, os lobos sempre foram vistos como comedores de homens.(BARBER, 1988: p.94) Além de se postar como um símbolo das ameaças da floresta, em contraste com a segurança proporcionada pelo convívio social, a personagem do lobo adquire um significado que ultrapassa sua função no texto se a considerarmos como a representação mais temida do ‘Outro’ do período compreendido entre os séculos XVI e XVIII: o lobisomem.
“A menina partiu. Na encruzilhada encontrou um lobo, que perguntou: ‘Para onde está indo?’”(TATAR, 2002:p.334). “A história da Avó”, de onde a citação anterior provém, é uma versão anônima de 1885 do conto “Chapeuzinho Vermelho”, coletada pelo folclorista francês Paul Delarue, sendo considerada por muitos estudiosos como uma das narrativas folclóricas mais próximas da tradição oral que precedeu Perrault, e que o teria auxiliado na composição de seu conto de fada. Neste pequeno trecho, encontram-se dois elementos indicadores de que, nas antigas versões orais, o vilão de “Chapeuzinho Vermelho” poderia ser, na verdade, o lobisomem folclórico: a habilidade de fala e a encruzilhada.
Sendo o único elemento que realmente se remete ao universo fantástico dos contos de fadas, a habilidade de fala do lobo pode também ser lida como uma indicação de que a fera que está espreitando a menina do capuz vermelho é o temido lobisomem. Ao contrário da imagem criada e veiculada pelo cinema –na qual o lobisomem é um ser de forma híbrida que anda em duas pernas como o homem, mas possui feições de lobo–, o lobisomem folclórico não passava de um ser humano que ora assumia a forma de um lobo normal, ora a alma possuía o corpo de um lobo ou era acometido por uma insanidade ou doença que o levava a apresentar uma fúria animalesca.(BARING-GOULD,2003:pp.17-20) Nestes três casos, o lobisomem ainda poderia manter sua capacidade de comunicação, o que apenas servia para denunciar sua condição sobrenatural. Mas se o modo da transformação poderia variar, o locus desta era bastante definido: a encruzilhada. Era neste local que a pessoa tanto se transformava em lobo quanto retornava para reassumir a forma humana. A encruzilhada, onde ocorre o primeiro encontro de Chapeuzinho Vermelho na versão oral de Paul Delarue e na versão de Perrault (próxima da narrativa folclórica), é de fato um dos elementos mais constantes relacionado ao folclore do lobisomem, sendo citada desde a Roma Antiga até os dias de hoje no interior do Brasil(CASCUDO, 1983: p.158), fato este que reforça a conexão da personagem do conto de fada com a besta folclórica.
Não se pode deixar de notar no folclore do lobisomem a advertência àqueles que, buscando destacar-se de seus semelhantes, infringiam e ameaçavam a ordem social. No entanto, outro fator que liga a figura do lobisomem à alteridade remonta à queda do Império Romano, quando a Europa mediterrânea passou a ser assolada pelas invasões nórdicas. Entre os antigos nórdicos, era costume que certos guerreiros vestissem as peles das feras que haviam abatido, o que lhes dava um ar de ferocidade, calculado para incutir o terror nos corações dos inimigos. Estes guerreiros – chamados de berserkir – eram objetos de aversão e terror entre os habitantes das terras invadidas, já que eles pilhavam, destruíam e matavam tudo em seu caminho, não respeitando igrejas, governos ou a idade e sexo de suas vítimas. Nesse sentido, é perfeitamente possível que a superstição tenha se difundido devido ao medo popular destes nômades vestidos com pele de lobo e urso, acreditando-se que estivessem imbuídos com a força das feras, cujas peles vestiam.(BARING-GOULD,2003:p.33)
As sucessivas invasões bárbaras penetraram fundo na psique dos europeus, gerando um estado de profundo temor do estrangeiro nômade, ou seja, de todos aqueles que não pertenciam a um lugar fixo e integrado a uma comunidade. Contribuiu também para este medo do ‘Outro’ e do desenvolvimento da imagem do lobisomem o fato de que este estrangeiro, muitas vezes apenas por não ser cristão, recusava-se a inclinar-se diante da cruz, algo que para os olhos do camponês cristianizado era considerado sinal de pacto com o diabo. Como lembra Georges Duby, durante a Idade Média, não é necessário ir muito longe para se sentir estrangeiro. No entanto, não se pode esquecer que há também o estrangeiro absoluto, ou seja, aquele que não pertence à comunidade cristã: o pagão, o judeu, o muçulmano.(DUBY, 1995:pp.62-63) Portanto, não é por acaso que os vilões dos contos de fadas considerados hoje “clássicos” são geralmente representados como ‘Outro’: a bruxa de “João e Maria” mora na floresta e é estereotipada como judia; o Barba Azul é geralmente representado como um muçulmano e mora num lugar afastado e sombrio.(SILVA, 2004:p.8) Além do pagão, do judeu e do muçulmano, também o eremita era objeto de temor e perseguição, pois sua condição anacoreta é a antípoda da coesão social.
Uma pergunta que talvez possa ocorrer sobre “Chapeuzinho Vermelho” na mente de um leitor adulto é: Por que uma senhora idosa e doente como a avó de Chapeuzinho Vermelho estaria morando em uma casa distante, no meio de uma floresta, e cercada de lobos? A resposta talvez seja: porque ela também é um lobo. Esta leitura da personagem da avó como um lobisomem é possível se mais uma vez nos atermos aos elementos folclóricos contidos nas versões de Perrault e dos irmãos Grimm. Em ambas as versões, a mãe de Chapeuzinho pede que a filha leve uma cesta com alimentos para a avó, pois, nas palavras da mãe: “me disseram que [a avó] está doente”(PERRAULT, 2002: p.336) A menção logo no início da narrativa da condição física da avó é relevante se considerarmos que a licantropia – a mudança de homem ou mulher para a forma de um lobo – já havia sido considerada uma doença desde finais da Idade Média. De fato, até hoje no interior do Brasil se olham as pessoas com anemia profunda (‘amarelas’ no linguajar popular), ou com tuberculose, com certa suspeita. Tais enfermos são possíveis candidatos a lobisomens.(CASCUDO,1983:p.156) A melancolia excessiva também era tida como uma das causas que poderiam levar alguém a se transformar nestes seres fantásticos. É interessante imaginar que, nas antigas narrativas orais, a simples menção do estado de saúde da avó no começo da estória já serviria de ‘indício’ para prender a atenção do público ouvinte até o momento de confirmação da ‘doença’ da avó.
Outro fator que evidencia a proposta de licantropia da avó é o local de sua moradia. Apesar de Perrault situar a casa da avó “numa outra aldeia”(PERRAULT, 2002:p.336), a versão dos irmãos Grimm não deixa dúvidas: “Sua avó morava lá no meio da mata”(GRIMM, 2002:p.30). Durante a Idade Média e nos séculos seguintes, considerando o preconceito social contra qualquer um que decidisse pela vida na floresta, pode-se propor que o modo de vida da personagem é algo derivado de uma condição física que a impossibilitaria de manter convívio contínuo com outras pessoas – o mesmo destino reservado aos leprosos, loucos e demais marginalizados, que eram isolados da sociedade.
Talvez a principal situação que liga a vovozinha ao lobisomem transcorra quando Chapeuzinho Vermelho chega ao seu destino e encontra o lobo na cama da avó, fazendo-se passar por ela. A versão dos irmãos Grimm diz: “Lá estava sua avó, deitada, com a touca puxada para cima do rosto. Parecia muito esquisita.”(GRIMM,2002:p.33) Embora em todas as versões fique claro que o lobo mata e devora a avó, a simulação que o lobo faz para se passar pela senhora cria uma justaposição dos personagens que possivelmente estaria presente em alguma narrativa oral de um tempo em que o lobo e a avó eram um único ser. Nesse sentido, a estranheza de Chapeuzinho em perceber o ser debaixo do cobertor como sua avó adquire um novo significado. Talvez ela saiba que quem está na cama é sua avó, mas como deverá agir? A avó na forma lupina lembrar-se-á da neta?
Como tantos outros contos de fadas, é difícil precisar as origens de “Chapeuzinho Vermelho”, mas sua função é clara: servir para as pessoas como uma fonte de aprendizado sobre o mundo e seus perigos. A advertência sobre os perigos do isolamento social não se esgota aqui, como demonstram as contínuas pesquisas e descobertas na área das narrativas folclóricas. Há, por exemplo, uma estória Latina de Egberto de Lièges, chamada Fecunda ratis (1023), na qual uma menininha é descoberta na companhia dos lobos. A menina usa uma manta vermelha de grande importância para ela. Será que a própria Chapeuzinho, com seu manto cor de sangue, não seria também um lobisomem?
Por ALEXANDER MEIRELES DA SILVA
Doutorando em Literatura Comparada (UFRJ). Mestre em Literaturas de Língua Inglesa (UERJ). Professor Titular de Literaturas de Língua Inglesa da FEUDUC (Fundação Educacional de Duque de Caxias - Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Duque de Caxias) e de Língua Inglesa e Literaturas correspondentes da UNIG (Universidade Iguaçu).
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2 comentários:
Estou começando um seminário sobre a verdade nos contos de fada, e queria saber se você poderia me indicar alguma literatura. Desde já, obrigada, Natália.
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