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quinta-feira, abril 28, 2005

A MENINA E O PÁSSARO ENCANTADO (Rubem Alves)



Era uma vez uma menina que tinha um pássaro como seu melhor amigo. Ele era um pássaro diferente de todos os demais: era encantado. Os pássaros comuns, se a porta da gaiola estiver aberta, vão embora para nunca mais voltar. Mas o pássaro da menina voava livre e vinha quando sentia saudades... Suas penas também eram diferentes. Mudavam de cor. Eram sempre pintadas pelas cores dos lugares estranhos e longínquos por onde voava. Certa vez, voltou totalmente branco, cauda enorme de plumas fofas como o algodão. “Menina, eu venho de montanhas frias e cobertas de neve, tudo maravilhosamente branco e puro, brilhando sob a luz da lua, nada se ouvindo a não ser o barulho do vento que faz estalar o gelo que cobre os galhos das árvores. Trouxe, nas minhas penas, um pouco de encanto que eu vi, como presente para você”. E assim ele começava a cantar as canções e as estórias daquele mundo que a menina nunca vira, até que ela adormecia e sonhava que voava nas asas do pássaro. Outra vez, voltou vermelho como fogo, penacho dourado na cabeça. “Venho de uma terra queimada pela seca, terra quente e sem água, onde os grandes,os pequenos e os bichos sofrem a tristeza do sol que não se apaga. Minhas penas ficaram como aquele sol e eu trago canções tristes daqueles que gostariam de ouvir o barulho das cachoeiras e ver a beleza dos campos verdes”. E de novo, começavam as estórias. A menina amava aquele pássaro e podia ouvi-lo sem parar, dia após dia. E o pássaro amava a menina e, por isso, voltava sempre.Mas chegava sempre uma hora de tristeza. “Tenho que ir” - ele dizia. “Por favor não vá, fico tão triste, terei saudades e vou chorar”.”Eu também terei saudades” - dizia o pássaro. Eu também vou chorar. Mas eu lhe vou contar um segredo: as plantas precisam da água, nós precisamos do ar, os peixes precisam dos rios... E o meu encanto precisa da saudade. É aquela tristeza, na espera da volta, que faz com que minhas penas fiquem bonitas. Se eu não for, não haverá saudades. Eu deixarei de ser um pássaro encantado e você deixará de me amar. Assim ele partiu. A menina sozinha, chorava de tristeza à noite imaginando se o pássaro voltaria. E foi numa dessas noites que ela teve uma idéia malvada. “Se eu o prender numa gaiola, ele nunca mais partirá; será meu para sempre. Nunca mais terei saudades e ficarei feliz”. Com esses pensamentos, comprou uma linda gaiola, própria para um pássaro que se ama muito. E ficou à espera. Finalmente, ele chegou, maravilhoso, com suas novas cores,com estórias diferentes para contar. Cansado da viagem, adormeceu. Foi então que a menina, cuidadosamente, o prendeu na gaiola para que ele nunca mais a abandonasse.E adormeceu feliz. Foi acordar de madrugada, com um gemido triste do pássaro. “Ah! Menina... Que é que você fez? Quebrou-se o encanto. Minhas penas ficarão feias e eu me esquecerei das estórias...Sem a saudade, o amor irá embora”. A menina não acreditou. Pensou que ele acabaria por se acostumar, mas isto não aconteceu.O tempo ia passando, e o pássaro ia ficando diferente. Caíram suas plumas, os vermelhos, os verdes e os azuis das penas transformaram-se num cinzento triste.E veio o silêncio; deixou de cantar. Também a menina se entristeceu. Não, aquele não era o pássaro que ela amava. E de noite ela chorava, pensando naquilo que havia feito ao seu amigo... Até que não mais agüentou. Abriu a porta da gaiola. “Pode ir, pássaro, volte quando quiser”. “Obrigado, menina. É, eu tenho que partir. É preciso partir para que a saudade chegue e eu tenha vontade de voltar. Longe, na saudade, muitas coisas boas começam a crescer dentro da gente. Sempre que você ficar com saudades, eu ficarei mais bonito. Sempre que eu ficar com saudades, você ficará mais bonita. E você se enfeitará para me esperar”. E partiu. Voou que voou para lugares distantes. A menina contava os dias, e cada dia que passava a saudade crescia. “Que bom, pensava ela, meu pássaro está ficando encantado de novo”. E ela ia ao guarda-roupa, escolher os vestidos; penteava os cabelos, colocava flores nos vasos. “Nunca se sabe. Pode ser que ele volte hoje!”. Sem que ela percebesse, o mundo inteiro foi ficando encantado como o pássaro. Porque, em algum lugar, ele deveria estar voando. De algum lugar ele haveria de voltar. Ah! Mundo maravilhoso que guarda em algum lugar secreto o pássaro encantado que se ama... E era assim que ela, cada noite, ia para a cama, triste de saudade, mas feliz com o pensamento. “Quem sabe ele voltará amanhã?” . E assim dormia e sonhava com a alegria do reencontro.

O menino que jogava estrelas ao mar


Um poeta foi para sua casa de praia buscar inspiração para escrever um novo livro. Seu hábito era passear pela areia toda manhã e a tarde escrevia. Numa dessas caminhadas visualizou ao longe, um jovem que se abaixava, apanhava alguma coisa na areia e a arremessava ao mar. No dia seguinte, em seu passeio, observou novamente o poeta o jovem a repetir a mesma cena da manhã anterior. Abaixava-se, apanhava algo na areia e arremessava ao mar. Na terceira manhã, ante a repetição das mesmas cenas, o poeta, intrigado, achegou-se ao jovem e perguntou: - O que fazes meu jovem? - Estou jogando essas estrelas-do-mar de volta ao oceano para elas não morrerem na praia - respondeu o jovem. - Mas porque você faz isso se milhões de estrelas-do-mar estão morrendo nas areias nesse momento e não vai fazer nenhuma diferença você salvar uma, duas ou três delas? Ao que o jovem respondeu: - Para essas duas ou três faz muita diferença. A partir desse dia, toda manhã é possível ver numa praia qualquer um jovem e um poeta arremessando estrelas de volta ao mar.

Colhida pela tradição oral. Recontada por James Silva

O HOMEM SEM SORTE




Vivia perto de uma aldeia um homem, um homem que era completamente sem sorte. Nada do que ele fazia dava certo. Muitas vezes ele plantava sementes e o vento vinha e as levava, outras vezes, era a chuva, que vinha tão violenta e carregava as sementes. Outras vezes ainda, as sementes permaneciam sob a terra, mas o sol, era tão quente, que as cozinhava. E ele se queixava com as pessoas e as pessoas escutavam suas queixas, da primeira vez com simpatia, depois com um certo desconforto e enfim quando o viam mudavam de caminho, ou entravam para dentro de suas casas fechando portas e janelas, evitando-o. Então alem de sem sorte, o homem se tornou chato e muito só. Ele começou a querer achar um culpado para o que acontecia com ele. Analisando a situação de sua família percebeu que seu pai era um homem de sorte, sua mãe, esta tinha sorte por Ter se casado com seu pai, e seus irmãos eram muito bem sucedidos, pois então, se não era um caso genético, só poderia ser coisa do Criador. E depois de muito pensar resolveu tomar uma atitude e ir até o fim do mundo falar com o Criador, que como Criador de tudo, deveria ter uma resposta. Arrumou sua malinha, algum alimento e partiu rumo ao fim do mundo. Andou um dia, um mês, um ano e um dia, e pouco antes de entrar numa grande floresta ouviu uma voz: - Moço, me ajude. Ele então olhou para os lados procurando alguém. Até que se deparou com um lobo, magro, quase sem pelos, era pele e osso o infeliz. Dava para contar suas costelas . Ele falou: - Há três meses estou nesta situação. Não sei o que está acontecendo comigo. Não tenho forças para me levantar daqui. O homem refeito do susto respondeu: - Você está se queixando a toa ...Eu tive azar a vida inteira. O que são três meses? Mas faça como eu. Procure uma resposta. Eu estou indo procurar o Criador para resolver o meu problema. - Se eu não tenho forças nem para ir ao rio beber água... Faça este favor para mim . Você está indo vê-lo, pergunte o que está acontecendo comigo. O homem fez um sinal de insatisfação e disse que estava muito preocupado com seu problema , mas se lembrasse, perguntaria. Virando as costas, continuou seu caminho. Andou um dia, um mês, um ano e um dia e de repente, ao tropeçar numa raiz, ouviu: - Moço, cuidado. E quando olhou, viu uma folhinha que vinha caindo, caindo…Olhando para cima viu que a árvore com apenas duas folhinhas. Levantou-se e observando suas raízes desenterradas, seus galhos retorcidos, sua casca soltando-se do tronco , falou: - Você não se envergonha ? Olhe as outras árvores a sua volta e diga se você pode ser chamada de árvore? Conserte sua postura. A árvore, com uma voz de muita dor, disse: - Não sei o que está acontecendo comigo. Estou me sentindo tão doente. Há seis meses que minhas folhas estão caindo, e agora, como vês, só restam duas... E, no fim de uma conversa, pediu ao homem que procurasse uma solução com o Criador. Contrariado , o homem virou as costas com mais uma incumbência. Andou um dia, um mês, um ano e um dia e chegou a um vale muito florido , com flores de todas as cores e perfumes. Mas o homem não reparou nisto. Chegou até uma casa e na frente da casa estava uma moça muito bonita que o convidou a entrar. Eles conversaram longamente e quando o homem deu por si já era madrugada. Ele se levantou dizendo que não podia perder tempo e quando já estava saindo ela lhe pediu um favor: - Você que vai procurar o Criador , podia perguntar uma coisa para mim? É que de vez em quando sinto um vazio no peito , que não tem motivo , nem explicação. Gostaria de saber o que é e o que posso fazer por isto. O homem prometeu que perguntaria e virou as costas e andou um dia, um mês, um ano e um dia e chegou por fim ao fim do mundo. Sentou-se e ficou esperando até que ouviu uma voz. E uma voz no fim do mundo, só podia ser a voz do criador. - Tenho muitos nomes. Chamam-me também de Criador... E o homem contou então toda a sua triste vida . Conversou longamente com a voz até que se levantou e virando as costas foi saindo, quando a voz lhe perguntou: - Você não está se esquecendo de nada? Não ficou de saber respostas para uma árvore, para um lobo e para uma jovem? - Tem razão...E voltou-se para ouvir o que tinha que ser dito. Depois de um tempinho virou-se e correu ....mais rápido que o vento até que chegou na casa da jovem. Como ela estava em frente à casa , vendo-o passar chamou: - Ei!!! Você conseguiu encontrar o Criador? Teve as respostas que queria? - Sim!!! Claro! O Criador disse que minha sorte está muito no mundo . Basta ficar alerta para perceber a hora de apanhá-la! - E quanto a mim, você teve a chance de fazer a minha pergunta? - Ah! O Criador disse que o que você sente é solidão. Assim que encontrar um companheiro vai ser completamente feliz, e mais feliz ainda vai ser o seu companheiro. A jovem então abriu um sorriso e perguntou ao homem se ele queria ser este companheiro. - Claro que não...Já trouxe a sua resposta....Não posso ficar aqui perdendo tempo com você. Não foi para ficar aqui que fiz toda esta jornada. Adeus!!! E virando as costas correu, mais rápido do que a água, até a floresta onde estava a árvore. Ele nem se lembrava dela. Mas quando novamente tropeçou em sua raiz, viu caindo uma última folhinha. Ela perguntou se ele tinha uma resposta, ao que o Homem respondeu: - Tenho muita pressa e vou ser breve, pois estou indo em busca de minha sorte, e ela está no mundo. O Criador disse que você tem embaixo de suas raízes uma caixa de ferro cheia de moedas de ouro. O ferro desta caixa está corroendo suas raízes. Se você cavar e tirar este tesouro daí vai terminar todo o seu sofrimento e você vai poder virar uma árvore saudável novamente. - Por favor !!!Faça isto por mim!!! Você pode ficar com o tesouro. Ele não serve para mim. Eu só quero de novo minha força e energia. O homem deu um pulo e falou indignado: - Você está me achando com cara de quê? Já trouxe a resposta para você. Agora resolva o seu problema. O Criador falou que minha sorte está no mundo e eu não posso perder tempo aqui conversando com você, muito menos sujando minhas mãos na terra. E virando as costas correu, mais rápido do que a luz atravessou a floresta , e chegou onde estava o lobo, mais magro ainda e mais fraco. O homem se dirigiu a ele apressadamente e disse: - O Criador mandou lhe falar que você não está doente. O que você tem é fome. Está a morrer de inanição, e como não tem forças mais para sair e caçar, vai morrer ai mesmo. A não ser, que passe por aqui uma criatura bastante estúpida, e você consiga comê-la. E nesse momento, os olhos do lobo se encheram de um brilho estranho, e reunindo o restante de suas forças, o lobo deu um pulo e comeu o homem sem sorte.

O CASAL SILENCIOSO

Era uma vez um homem e uma mulher que tinham acabado de se casar. Ainda vestidos com seus trajes nupciais se acomodaram em seu novo lar mal o último convidado partiu.
- Querido - disse a jovem senhora, - Vá fechar a porta que dá para a rua. Ficou aberta.
- Fechar a porta? Eu? - falou o noivo. - Um noivo em seus trajes esplêndidos, com um manto de valor inestimável e uma adaga cravejada de pedras? Como alguém poderia esperar que eu fizesse uma coisa dessas? Você deve estar fora do juízo. Vá você mesma fechá-la.
- Ah, é? - gritou a noiva.- Você pensa que sou sua escrava? Uma mulher bonita e gentil como eu, que usa um vestido da mais fina seda? Você acha que eu me levantaria do dia do meu casamento para fechar a porta que dá para uma via pública? Impossível!
Ficaram em silêncio por um minuto ou dois, e a mulher sugeriu que poderiam solucionar o problema com uma aposta. Combinaram que o primeiro que falasse fecharia a porta. Havia dois sofás na sala, e a dupla se sentou, frente a frente, olhando-se em silêncio. Ficaram assim durante duas ou três horas. Enquanto isso um bando de ladrões passou por ali e viram que a porta estava aberta. Esgueiraram-se para dentro da casa silenciosa, que parecia deserta, e começaram a recolher todos os objetos que pudessem carregar, fosse qual fosse o seu valor. O casal de noivos os ouviu entrar, mas um achava que era o outro quem devia cuidar do assunto. Nenhum dos dois falou, nem se mexeu, enquanto os ladrões iam de um quarto a outro, até que finalmente chegaram à sala e não perceberam, de início, a sombria e estática dupla. O casal no entanto continuava sentado, enquanto os ladrões carregavam todos os valores e enrolavam os tapetes sob os pés dos esposos. Confundindo o idiota e sua obstinada esposa com manequins de cera, despojaram-nos de suas jóias. Mesmo assim a dupla continuava muda. Os ladrões se foram. A noiva e o noivo continuaram sentados a noite toda, e nenhum deles desistiu. Ao amanhecer um policial em sua ronda viu a porta aberta e entrou. Indo de um aposento ao outro, chegou finalmente ao casal e perguntou-lhes o que tinha acontecido. Nem o homem nem a mulher se dignaram a responder. O policial pediu reforços. Muitos defensores da lei chegaram, e todos foram ficando cada vez mais furiosos diante do silêncio total, que lhes parecia, obviamente, uma afronta calculada. O oficial encarregado perdeu finalmente o controle e ordenou a um de seus homens:
- Dê um tabefe ou dois nesse homem para que recupere a razão. Diante disso a mulher não conseguiu conter-se: - Por favor, senhores guardas - choramingou, - não batam nele. É meu marido!
- Ganhei! - gritou imediatamente o imbecil. - Você vai fechar a porta!

A FÁBULA DA CONVIVÊNCIA



Durante uma era glacial, muito remota, quando parte do globo terrestre esteve coberto por densa camada de gelo, muitos animais não resistiram ao frio intenso e morreram indefesos, por não se adaptarem às condições do clima hostil. Foi então que uma grande manada de porcos-espinhos numa tentativa de se proteger e sobreviver, começou a se unir, a juntar-se mais e mais. Assim, cada um podia sentir o calor do corpo do outro. E todos juntos, bem unidos, agasalhavam-se mutuamente, aqueciam-se, enfrentando por mais tempo aquele inverno tenebroso. Porém, vida ingrata, os espinhos de cada um começaram a ferir os companheiros mais próximos, justamente aqueles que forneciam mais calor, aquele calor vital, questão de vida ou morte. E afastaram-se, feridos, magoados, sofridos. Dispersaram-se, por não suportarem mais tempo os espinhos de seus semelhantes. Doíam muito ... Mas essa não foi a melhor solução: afastados, logo começaram a morrer congelados. Os que não morreram voltaram a se aproximar pouco a pouco, com jeito, com precauções, de tal forma que, unidos, cada qual conservava uma certa distância do outro, mínima ,mas o suficiente para conviver sem ferir, para sobreviver sem magoar, sem causar danos recíprocos.Assim suportaram-se, resistindo à longa era glacial.
Sobreviveram!
É fácil trocar as palavras
difícil é interpretar os silêncios.
É fácil caminhar lado a lado
difícil é saber como se encontrar.
É fácil beijar o rosto
difícil é chegar ao coração.
É fácil apertar as mãos
difícil é reter seu calor.
É fácil sentir o amor
difícil é conter sua torrente
.

Sobre águia e galinhas


Era uma vez um camponês que foi à floresta vizinha apanhar um pássaro para mantê-lo cativo em sua casa. Conseguiu pegar um filhote de águia. Colocou-o no galinheiro junto com as galinhas. Comia milho e ração própria para galinhas. Embora a águia fosse o rainha de todos os pássaros. Depois de cinco anos, este homem recebeu em sua casa a visita de um naturalista. Enquanto passeavam pelo jardim, disse o naturalista:
- Esse pássaro aí não é galinha. É uma águia.
- De fato - disse o camponês. É águia. Mas eu a criei como galinha. Ela não é mais uma águia. Transformou-se em galinha como as outras, apesar das asas de quase três metros de extensão.
- Não - retrucou o naturalista. Ela é e será sempre uma águia. Pois tem um coração de águia. Este coração a fará um dia voar às alturas.
- Não, não - insistiu o camponês. Ela virou galinha e jamais voará como águia.Então decidiram fazer uma prova.
O naturalista tomou a águia, ergueu-a bem alto e desafiando-a disse:
- Já que você de fato é uma águia, já que você pertence ao céu e não à terra, então abra suas asas e voe!
A águia pousou sobre o braço estendido do naturalista. Olhava distraidamente ao redor. Viu as galinhas lá embaixo, ciscando grãos. E pulou para junto delas. O camponês comentou: - Eu lhe disse, ela virou uma simples galinha!
- Não - tornou a insistir o naturalista. Ela é uma águia. E uma águia será sempre uma águia. Vamos experimentar novamente amanhã.
No dia seguinte, o naturalista subiu com a águia no teto da casa. Sussurou-lhe:
- Águia, já que você é uma águia, abra suas asas e voe!
Mas quando a águia viu lá embaixo as galinhas, ciscando o chão, pulou e foi para junto delas.
O camponês sorriu e voltou à carga:
- Eu lhe havia dito, ela virou galinha!
- Não - respondeu firmemente o naturalista. Ela á águia, possuirá um coração de águia. Vamos experimentar ainda uma última vez. Amanhã a farei voar.
No dia seguinte, o naturalista e o camponês levantaram bem cedo. Pegaram a águia, levaram-na para fora da cidade, longe das casas dos homens, no alto de uma montanha. O sol nascente dourava os picos das montanhas. O naturalista ergueu a águia para o alto e ordenou-lhe:
- Águia, já que você é uma águia, já que você pertence ao céu e não à terra, abra suas asas e voe!A águia olhou ao redor. Tremia como se experimentasse nova vida. Mas não voou. Então o naturalista segurou-a firmemente, bem na direção do sol, para que seus olhos pudessem encher-se da claridade solar e da vastidão do horizonte. Nesse momento, ela abriu suas potentes asas, grasnou com o típico kau-kau das águias e ergueu-se, soberana, sobre si mesma. E começou a voar, a voar para o alto, a voar cada vez para mais alto. Voou...voou...até confundir-se com o azul do firmamento".

No mar sem hipocampos

Assim que anoiteceu, saiu para pescar. Peixes não, estrelas. Afastous-se da casa, atravessou um campo até o seu limite. Na linha do horizonte, sentado à beira do céu, abriu a caixa das frases poéticas que havia trazido como iscas. Escolheu a mais sonora, prendeu-a firmemente na rebarba luzidia. Depois, pondo-se de cabeça para baixo, lançou a linha no imenso azul, deixando desenrolar todo o molinete. E, paciente, enquanto a Lua avançava sem mover ondas, começou a longa espera de que uma estrela viesse morder o anzol.

(Marina Colasanti)

Modinha

Quando eu fico aguda de saudade eu viro só ouvido. Encosto ele no ar, na terra, no canto das paredes, pra escutar nefando, a palavra nefando. Um homem que já morreu cantava "a flor mimosa desbotar não pode, nem mesmo o tempo de um poder nefando"- mais dolorido canta quem não é cantor. A alma dele zoando de tão grave, tocável como o ar de sua garganta vibrando. No juízo final, se Deus permitisse, eu acordava um morto com este canto, mais que o anjo com sua trombeta.

(Adélia Prado)

Felicidade

"Disseram para aquele homem, que a felicidade estaria no sítio. E agora ele está lá, as mãos encravadas nas reentrâncias do rochedo, o corpo fustigado pelo vento, os olhos parados, fixos no pedaço de felicidade. Acreditamos, que qualquer hora ele vai soltar as mãos para tentar agarrar a felicidade, então veremos um corpo sendo levado pelo vento, com um pedaço da felicidade nas mãos"

Extraído do livro "As Laranjas são iguais" de Oswaldo França Junior

A liberdade de ler: em busca da fruição

Estamos em uma era em que os meios de comunicação exercem forte influência sobre as pessoas, ditando regras e estabelecendo padrões. Dentro desse contexto, a literatura ocupa um espaço minoritário, deixando uma enorme responsabilidade aos educadores para a mudança dessa realidade. Faz-se necessário entender quais motivos levaram a Literatura Infantil ser rejeitada como arte entre as crianças, e assim ser pouco difundida e manuseada por elas.
Essa rejeição justifica-se pela origem histórica da literatura infantil, que tem relação estreita com a concepção de infância que começa a se estabelecer no século XVII. Em virtude da ascensão da família burguesa, uma nova concepção de infância surge, a criança passa a ser vista como um ser diferente do adulto, com necessidades e características próprias. É inevitável uma educação dirigida a ela, surgindo então, a organização escolar. Segundo Arroyo, “a concepção de criança está em constante transformação, dependendo do momento histórico e do papel que a mulher exerce na sociedade, uma vez que em nossa cultura a mãe está muito próxima ao infante, pois a concepção de criança muda de acordo com o papel que ela assume”
[1].
Partindo desses pressupostos, é interessante ressaltar que a literatura destinada às crianças no século XVII era de cunho estritamente pedagógico, com finalidade pragmática, incumbida de dominar a criança. ZILBERMAN esclarece “Concebida originalmente como objeto exclusivo das crianças, passou a receber um status científico, no momento em que se percebeu que não apenas era produzida pelos adultos, mas, como se viu, manipulada por eles, tendo em vista a dominação da infância”
[2].
Além disso, a literatura tradicional está impregnada de valores que vem padronizando pensamentos e comportamentos desde então. Ao observar os heróis românticos, constata-se que são seres exemplares dotados de muitas virtudes, deixando evidente o individualismo, pois tornaram-se modelos ideais a serem seguidos. Também está implícito nessas literaturas, o quanto é importante o ter, desvalorizando o ser.
Nesse período, em conseqüência da dominância religiosa, as literaturas apresentavam em seus enredos, grande valorização à virtude e punição severa ao vício, que se daria além da vida. O sexo era uma afronta a moral, tendo como objetivo apenas a procriação, limitando o prazer aos homens. Como conseqüência, passou-se a produzir uma literatura que trabalhava a acepção entre homem e mulher, evidenciando o papel que cabia a cada um.
A literatura tradicional vem sendo difundida desde então, sedimentando-se na práxis pedagógica dos educadores. Contudo, contemporaneamente não se pode fazer uso da Literatura Infantil, como há cem anos atrás, formando leitores decodificadores e seguidores apenas de uma pragmática, sem se considerar o texto como um leque de possibilidades interpretativas.
Contrapondo a literatura tradicional com a literatura atual podemos verificar diferenças básicas. Essa última, segundo Novaes Coelho, enfatiza o espírito solidário, não mais o indivíduo herói, mas um grupo que em conjunto encontra soluções, que são conseguidas através de questionamentos da “verdade”.
Numa nova visão de literatura, as histórias devem questionar o poder absoluto e a realidade social vigente, dando subsídios para a transformação necessária, valorizando o ser acima do ter, visando a construção de um ser que não é perfeito, mas está em aperfeiçoamento constante. O sexo, não é mais apenas um modo de procriação, mas também de fruição e as famílias deixam de ser ideais, abordando outras realidades como a de pais separados, mães que trabalham fora. Apesar de abordar os itens citados e tantos outros, a literatura nova não deixa de possibilitar a fruição, mas “é antes de tudo, literatura; ou melhor, é arte: fenômeno de criatividade que representa o mundo, o homem, a vida através da palavra. Funde os sonhos e a vida prática, o imaginário e o real, os ideais e sua possível realização...”
[3]
No âmbito das considerações anteriores, vale ressaltar que o professor tem a tarefa de propor situações agradáveis à criança para que possa deixá-la livre. Para Cagneti, “libertar o leitor é deixá-lo em contato com o livro e permitir que ele sozinho busque seus caminhos literários, através de seus próprios meios – tirando do texto o que mais lhe interessar no momento, usufruindo aquilo que veio ao encontro de suas buscas, sentindo prazer de ler pelo ler sem ser cobrado depois. A identificação do leitor com o texto é sua e, portanto, singular. Como, então, cobrar o que eu, professor, não senti?”
[4]
A leitura pode ser uma fonte de alegria tanto quanto pode causar perturbações à alma, como enfatiza Rubem Alves
[5]. A maneira como ela é abordada é que definirá a sensação que causará ao leitor.
Para que a sensação causada não seja de desprazer, é importante provar os paratextos do livro, que requerem uma certa sensibilidade. Dessa forma, o leitor decidirá se continuará ou não a leitura, pois se entregar à degustação de um livro, sem saboreá-lo, é prova de doidice.
Contrapondo-se à fruição que o livro é capaz de causar, a escola aborda a literatura unicamente como fonte de saber, tornando-a pesada e difícil de “roer”. A escola não considera que o escritor não escreve com o intuito de formar consciência crítica, mas com o objetivo de fruir prazer em quem lê. Dessa forma, ela utiliza a literatura apenas com finalidades pedagógicas.
Rubem Alves reforça que quando a escola assume a postura de apenas informar sobre a literatura, acaba castrando os órgãos de prazer da criança que possivelmente sairão da escola sem se iniciarem no mundo prazeroso da leitura.
Utilizar-se de recursos que incentivem a busca pelo livro é incumbência do professor, e a informática é um instrumento que abre muitas possibilidades para se aguçar a imaginação da criança. Ao contrário do que muitos pensam, o computador não é um instrumento que anula o livro, mas que o enriquece com o auxílio da tecnologia.
Outro item importante é a ilustração de um livro, pois através da leitura icônica a criança inicia no mundo literário muito antes de aprender a decodificar a escrita. Com a ilustração, o autor do texto pode enriquecê-lo ou matá-lo. Os livros de Ziraldo são um exemplo de ilustrações que permitem à criança leitora criar em cima do texto já escrito, contribuindo para a sua formação cognitiva, emocional e social.
Portanto, cabe ao educador construir uma nova concepção de literatura, utilizando-a não apenas como um meio para ensinar um conteúdo, mas possibilitando à criança fruir através da história, suscitando seu imaginário, tendo uma visão mais ampla de tudo que a cerca, tornado-a mais reflexiva e crítica, sendo capaz de organizar seu pensamento frente a realidade social que vive e atua.
No auto-estranhamento do texto
[6], ou seja, na reversibilidade da criança com a história, dá-se um processo de leitura e releitura do texto que gera um remoer existencial. A criança vai criando seu próprio discurso e, por mais que o texto lido seja rico, sempre haverá espaço à criança para imaginar e sonhar. Além de proporcionar prazer, a história pode suscitar respostas e apresentar novas emoções. “É ouvindo estórias que se pode sentir (também) emoções importantes, como a tristeza, raiva, a irritação, o bem-estar, o medo, a alegria, o pavor, a insegurança, a tranqüilidade, e tantas outras mais a viver profundamente tudo o que as narrativas provocam em quem as ouve”.[7]
Nesse sentido, é importante a experimentação de atividades de leitura e produções diversas que gerem uma relação fruitiva entre leitor e livro. Para BARTHES, essa relação fruitiva se constrói quando o leitor penetra nas margens do texto, perpassando pelas suas a fendas, descamando o texto, descobrindo as suas camadas ocultas. Uma relação que só se estabelece depois do primeiro passo: a conquista do leitor.
Portanto, depende dos adultos aproximarem a criança e o livro de modo prazeroso: “Se a criança é a única culpada nos tribunais adultos por não ler, pede-se o veredicto inocente... mais culpados são os adultos que não lhe proporcionam esse contato, que não lhe abrem essas - e outras tantas – trilhas para toda maravilha que é a caminhada pelo mundo mágico e encantado das letras...”
[8]

(Simone Gonçalves da Silva Policarpo)

sexta-feira, abril 22, 2005

O conto de fada e a problemática do pertencimento social

Se há uma característica que vem marcando o processo de desenvolvimento da civilização desde o seu início é a idéia de que, para existir, a sociedade depende da integração do homem com seu meio. Essa ênfase ao pertencimento social é decorrente dos vários elementos que ameaçavam constantemente a integridade dos grupos humanos no passado, tais como: guerras, pestes e invasões estrangeiras. Essa necessidade de coesão social fomentou a criação de narrativas que gradativamente ajudaram a cristalizar um sistema de idéias sobre a expectativa da sociedade em relação ao papel social do indivíduo. Nesse sistema, o ‘Outro’ é aquele que, deliberadamente ou não, se encontra isolado do convívio com seus semelhantes, ou não compartilha dos mesmos costumes. Nesta condição, ele se torna o desvio a ser evitado, o exemplo do negativo e do perigoso. Conforme será visto a seguir, dentre as várias formas de criação de narrativas, o conto de fada também se utiliza significativamente da imagem de ameaça que o ‘Outro’ representaria para a integridade da sociedade. A fim de desenvolver e exemplificar tal idéia, este artigo discutirá como o conto de fada “Chapeuzinho Vermelho” funda sua forma num discurso legitimador da integração social através das personagens do lobo e da avó.
A edição do conto de fada, tal como o conhecemos hoje, surge na França de fins do século XVII sob iniciativa de Charles Perrault(1628-1703). Ao contrário do que possa ser pensado, Perrault não criou as narrativas de seus contos, mas as editou para que estas se adequassem à audiência da corte do rei Luís XIV(1638-1715). Foram as narrativas folclóricas contadas pelos camponeses, governantas e serventes que forneceram a matéria-prima para estes contos. Apesar do distanciamento da camada popular e do desprezo pela sua cultura, a classe nobre conhecia tais narrativas através do inevitável contato por meio do comércio ou pela presença das governantas e outros serviçais em suas residências. Após coletar tais narrativas, Charles Perrault eliminou o quanto pôde as passagens obscenas ou repugnantes que continham incesto, sexo grupal e canibalismo, para manter o seu apelo literário junto aos salões letrados parisienses. Assim, veio a público as “Histórias ou contos do tempo passado, com suas moralidades: Contos de Mãe Gansa”(1697), dando forma editorial para “A Bela Adormecida no Bosque”, “Chapeuzinho Vermelho”, “O Gato de Botas”, “As Fadas”, “A Gata Borralheira”, “Henrique do Topete” e “O Pequeno Polegar”. Portanto, antes de ter sido voltado para as crianças, o conto de fada foi originalmente criado tendo-se em mente os leitores adultos.(COELHO, 1997: p.35)
Dois fatores principais podem ser apontados para ajudar a esclarecer a transferência dos contos de fadas do universo adulto para o infantil. O primeiro é que, até o século XVII, a criança não era percebida como um ser socialmente distinto do adulto. Ela compartilhava com os adultos o mesmo tipo de roupa, os cômodos, o trabalho e também os ambientes sociais.(SHAVIT, 1999:p.317) Assim, circulando entre adultos, as crianças entravam em contato com os contos de fadas e invariavelmente se sentiam atraídas para o seu universo imaginativo. Cabe destacar também o papel-chave que as governantas, vindas da camada popular, desempenharam nesse processo ao contarem as narrativas folclóricas para os filhos dos nobres que ficavam aos seus cuidados. O exemplo desta importância está na capa da primeira edição de “Contos da Mãe Gansa”, em que Perrault mostra uma senhora idosa contando estórias para crianças ao pé da lareira.
A partir de meados do século XVII – e gradativamente até o século XIX –, a Revolução Industrial, a diminuição da mortalidade infantil e o aumento da expectativa de vida contribuíram para o desenvolvimento da noção social de infância. Uma vez configurada socialmente a criança, a Igreja, os moralistas e os pedagogos perceberam o potencial educativo e disciplinador dos contos. Aqui reside o segundo ponto da ligação das crianças com os contos de fadas: a exemplaridade. Em todos estas estórias havia a intenção de se transmitir determinados valores ou padrões a serem respeitados pela comunidade ou incorporados pelo comportamento de cada indivíduo. É por esta razão que até hoje se vê o conto de fada mais como um instrumento pedagógico do que como uma arte literária. Dentre os muitos valores transmitidos, aqueles relacionados à noção de pertencimento social ocuparam lugar de destaque, o que é facilmente exemplificado através do conto de fada “Chapeuzinho Vermelho”.
“No que você pensa quando vê alguém de vermelho carregando um cesto?” (WILSON, 1993: p. 271), instiga a escritora canadense Margaret Atwood ao referir-se à ilustração da capa de seu romance “A história da Aia’(1985), em que se vê uma figura feminina com vestido vermelho carregando uma cesta. Efetivamente, a estória da menina que carrega uma cesta com comida para a casa da avó e encontra o lobo mal enraizou-se na cultura ocidental, dispensando qualquer apresentação. No entanto, não se pode esquecer que a versão literária mais conhecida atualmente deste conto de fada é a dos irmãos Grimm, publicada em “Contos da infância e do lar”(1813-15). Diferentemene do conto de Perrault, que termina com Chapeuzinho Vermelho sendo devorada pelo lobo, a estória dos irmãos Grimm acrescenta a figura de um caçador que resgata, intactas, Chapeuzinho e a avó da barriga do lobo. Apesar dessas diferenças, ambos os contos são prioritariamente lidos como um alerta para as crianças sobre as conseqüências de desobedecerem às ordens dos pais. No entanto, mais importante do que as particularidades entre tais versões, é o fato de que, ao contrário de outros contos de fadas cujas raízes folclóricas se perdem nas brumas do tempo, “Chapeuzinho Vermelho” apresenta elementos que permitem pensar sua genealogia. O lobo é a chave para se perceber em “Chapeuzinho Vermelho” um discurso legitimador da integração social.
Diferentemente de outros vilões dos contos de fadas que são ligados ao mágico (bruxas, ogros, trolls, gigantes e duendes), o lobo que encontra Chapeuzinho no meio da floresta é uma fera real. Portanto, lugar do bestial ou da transgressão, a floresta era tida como a habitação dos seres banidos da companhia humana. Nesse sentido, “Chapeuzinho Vermelho” subverte a atmosfera de fantasia dos contos de fadas, sugerindo que a estória pode ter se originado relativamente tarde (na Idade Média), como um conto admonitório que advertia as pessoas para os perigos da floresta, incluindo aí seus predadores, e da importância de se manter a comunidade unida, especialmente no inverno, quando a escassez de comida levava os lobos a atacarem com mais freqüência os camponeses. Como explica Paul Barber, os lobos sempre foram vistos como comedores de homens.(BARBER, 1988: p.94) Além de se postar como um símbolo das ameaças da floresta, em contraste com a segurança proporcionada pelo convívio social, a personagem do lobo adquire um significado que ultrapassa sua função no texto se a considerarmos como a representação mais temida do ‘Outro’ do período compreendido entre os séculos XVI e XVIII: o lobisomem.
“A menina partiu. Na encruzilhada encontrou um lobo, que perguntou: ‘Para onde está indo?’”(TATAR, 2002:p.334). “A história da Avó”, de onde a citação anterior provém, é uma versão anônima de 1885 do conto “Chapeuzinho Vermelho”, coletada pelo folclorista francês Paul Delarue, sendo considerada por muitos estudiosos como uma das narrativas folclóricas mais próximas da tradição oral que precedeu Perrault, e que o teria auxiliado na composição de seu conto de fada. Neste pequeno trecho, encontram-se dois elementos indicadores de que, nas antigas versões orais, o vilão de “Chapeuzinho Vermelho” poderia ser, na verdade, o lobisomem folclórico: a habilidade de fala e a encruzilhada.
Sendo o único elemento que realmente se remete ao universo fantástico dos contos de fadas, a habilidade de fala do lobo pode também ser lida como uma indicação de que a fera que está espreitando a menina do capuz vermelho é o temido lobisomem. Ao contrário da imagem criada e veiculada pelo cinema –na qual o lobisomem é um ser de forma híbrida que anda em duas pernas como o homem, mas possui feições de lobo–, o lobisomem folclórico não passava de um ser humano que ora assumia a forma de um lobo normal, ora a alma possuía o corpo de um lobo ou era acometido por uma insanidade ou doença que o levava a apresentar uma fúria animalesca.(BARING-GOULD,2003:pp.17-20) Nestes três casos, o lobisomem ainda poderia manter sua capacidade de comunicação, o que apenas servia para denunciar sua condição sobrenatural. Mas se o modo da transformação poderia variar, o locus desta era bastante definido: a encruzilhada. Era neste local que a pessoa tanto se transformava em lobo quanto retornava para reassumir a forma humana. A encruzilhada, onde ocorre o primeiro encontro de Chapeuzinho Vermelho na versão oral de Paul Delarue e na versão de Perrault (próxima da narrativa folclórica), é de fato um dos elementos mais constantes relacionado ao folclore do lobisomem, sendo citada desde a Roma Antiga até os dias de hoje no interior do Brasil(CASCUDO, 1983: p.158), fato este que reforça a conexão da personagem do conto de fada com a besta folclórica.
Não se pode deixar de notar no folclore do lobisomem a advertência àqueles que, buscando destacar-se de seus semelhantes, infringiam e ameaçavam a ordem social. No entanto, outro fator que liga a figura do lobisomem à alteridade remonta à queda do Império Romano, quando a Europa mediterrânea passou a ser assolada pelas invasões nórdicas. Entre os antigos nórdicos, era costume que certos guerreiros vestissem as peles das feras que haviam abatido, o que lhes dava um ar de ferocidade, calculado para incutir o terror nos corações dos inimigos. Estes guerreiros – chamados de berserkir – eram objetos de aversão e terror entre os habitantes das terras invadidas, já que eles pilhavam, destruíam e matavam tudo em seu caminho, não respeitando igrejas, governos ou a idade e sexo de suas vítimas. Nesse sentido, é perfeitamente possível que a superstição tenha se difundido devido ao medo popular destes nômades vestidos com pele de lobo e urso, acreditando-se que estivessem imbuídos com a força das feras, cujas peles vestiam.(BARING-GOULD,2003:p.33)
As sucessivas invasões bárbaras penetraram fundo na psique dos europeus, gerando um estado de profundo temor do estrangeiro nômade, ou seja, de todos aqueles que não pertenciam a um lugar fixo e integrado a uma comunidade. Contribuiu também para este medo do ‘Outro’ e do desenvolvimento da imagem do lobisomem o fato de que este estrangeiro, muitas vezes apenas por não ser cristão, recusava-se a inclinar-se diante da cruz, algo que para os olhos do camponês cristianizado era considerado sinal de pacto com o diabo. Como lembra Georges Duby, durante a Idade Média, não é necessário ir muito longe para se sentir estrangeiro. No entanto, não se pode esquecer que há também o estrangeiro absoluto, ou seja, aquele que não pertence à comunidade cristã: o pagão, o judeu, o muçulmano.(DUBY, 1995:pp.62-63) Portanto, não é por acaso que os vilões dos contos de fadas considerados hoje “clássicos” são geralmente representados como ‘Outro’: a bruxa de “João e Maria” mora na floresta e é estereotipada como judia; o Barba Azul é geralmente representado como um muçulmano e mora num lugar afastado e sombrio.(SILVA, 2004:p.8) Além do pagão, do judeu e do muçulmano, também o eremita era objeto de temor e perseguição, pois sua condição anacoreta é a antípoda da coesão social.
Uma pergunta que talvez possa ocorrer sobre “Chapeuzinho Vermelho” na mente de um leitor adulto é: Por que uma senhora idosa e doente como a avó de Chapeuzinho Vermelho estaria morando em uma casa distante, no meio de uma floresta, e cercada de lobos? A resposta talvez seja: porque ela também é um lobo. Esta leitura da personagem da avó como um lobisomem é possível se mais uma vez nos atermos aos elementos folclóricos contidos nas versões de Perrault e dos irmãos Grimm. Em ambas as versões, a mãe de Chapeuzinho pede que a filha leve uma cesta com alimentos para a avó, pois, nas palavras da mãe: “me disseram que [a avó] está doente”(PERRAULT, 2002: p.336) A menção logo no início da narrativa da condição física da avó é relevante se considerarmos que a licantropia – a mudança de homem ou mulher para a forma de um lobo – já havia sido considerada uma doença desde finais da Idade Média. De fato, até hoje no interior do Brasil se olham as pessoas com anemia profunda (‘amarelas’ no linguajar popular), ou com tuberculose, com certa suspeita. Tais enfermos são possíveis candidatos a lobisomens.(CASCUDO,1983:p.156) A melancolia excessiva também era tida como uma das causas que poderiam levar alguém a se transformar nestes seres fantásticos. É interessante imaginar que, nas antigas narrativas orais, a simples menção do estado de saúde da avó no começo da estória já serviria de ‘indício’ para prender a atenção do público ouvinte até o momento de confirmação da ‘doença’ da avó.
Outro fator que evidencia a proposta de licantropia da avó é o local de sua moradia. Apesar de Perrault situar a casa da avó “numa outra aldeia”(PERRAULT, 2002:p.336), a versão dos irmãos Grimm não deixa dúvidas: “Sua avó morava lá no meio da mata”(GRIMM, 2002:p.30). Durante a Idade Média e nos séculos seguintes, considerando o preconceito social contra qualquer um que decidisse pela vida na floresta, pode-se propor que o modo de vida da personagem é algo derivado de uma condição física que a impossibilitaria de manter convívio contínuo com outras pessoas – o mesmo destino reservado aos leprosos, loucos e demais marginalizados, que eram isolados da sociedade.
Talvez a principal situação que liga a vovozinha ao lobisomem transcorra quando Chapeuzinho Vermelho chega ao seu destino e encontra o lobo na cama da avó, fazendo-se passar por ela. A versão dos irmãos Grimm diz: “Lá estava sua avó, deitada, com a touca puxada para cima do rosto. Parecia muito esquisita.”(GRIMM,2002:p.33) Embora em todas as versões fique claro que o lobo mata e devora a avó, a simulação que o lobo faz para se passar pela senhora cria uma justaposição dos personagens que possivelmente estaria presente em alguma narrativa oral de um tempo em que o lobo e a avó eram um único ser. Nesse sentido, a estranheza de Chapeuzinho em perceber o ser debaixo do cobertor como sua avó adquire um novo significado. Talvez ela saiba que quem está na cama é sua avó, mas como deverá agir? A avó na forma lupina lembrar-se-á da neta?
Como tantos outros contos de fadas, é difícil precisar as origens de “Chapeuzinho Vermelho”, mas sua função é clara: servir para as pessoas como uma fonte de aprendizado sobre o mundo e seus perigos. A advertência sobre os perigos do isolamento social não se esgota aqui, como demonstram as contínuas pesquisas e descobertas na área das narrativas folclóricas. Há, por exemplo, uma estória Latina de Egberto de Lièges, chamada Fecunda ratis (1023), na qual uma menininha é descoberta na companhia dos lobos. A menina usa uma manta vermelha de grande importância para ela. Será que a própria Chapeuzinho, com seu manto cor de sangue, não seria também um lobisomem?
Por ALEXANDER MEIRELES DA SILVA
Doutorando em Literatura Comparada (UFRJ). Mestre em Literaturas de Língua Inglesa (UERJ). Professor Titular de Literaturas de Língua Inglesa da FEUDUC (Fundação Educacional de Duque de Caxias - Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Duque de Caxias) e de Língua Inglesa e Literaturas correspondentes da UNIG (Universidade Iguaçu).

Referências Bibliográficas:
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BARBER, Paul. Vampires, burial and death. New York: Yale University Press, 1988. BARING-GOULD, Sabine. Lobisomem: um tratado sobre casos de licantropia. Trad. Fernanda M. V. de Azevedo Rossi. São Paulo: Madras, 2003.
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Trad. Arlene Caetano. 9ed. São Paulo: Paz e Terra, 1992.
CASCUDO, Luis da Camara. “Lobisomem”. In: ---. Geografia dos mitos brasileiros. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1983, pp. 145-162.
COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil. 6ed. São Paulo: Editora Ática, 1997.
DUBY, Georges. “O medo do outro”. In: ---. Ano 1000, ano 2000: na pista de nossos medos. Trad. Eugênio Michel da Silva. São Paulo: Editora Unesp, 1998, pp. 49-75.
FISKE, John. “Werewolves and swan-maidens”. In: ---. Myths and myth makers. London: Random House, 1996, pp. 69-103.
GRIMM, Irmãos. “Chapeuzinho Vermelho”. In: TATAR, Maria (ed.). Contos de fadas. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002, pp. 30-36.
KAPPLER, Claude. Monstros, demônios e encantamentos no fim da Idade Média. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
PERRAULT, Charles. “Chapeuzinho vermelho”. In: TATAR, Maria. (ed.) Contos de fadas. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002, pp. 336-338.
SHAVIT, Zohar. “The concept of childhood and children’s folktales: test case – ‘little red riding hood’”. In: TATAR, Maria. (ed.) The classic fairy tales: a norton critical edition. New York: W. W. Norton & Company Inc, 1999, pp. 317-332.
SILVA, Alexander Meireles. ““O Barba Azul”: conto de fadas ou conto gótico?””. Revista Eletrônica do Instituto de Humanidades nº 9. (Abril-Junho). Artigo 3. Rio de Janeiro: UNIGRANRIO, 2004, p. 1-10. Disponível na Internet em www.unigranrio.com.br/letras/revista/numero9.htm
TATAR, Maria. Contos de fadas. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.
------. “Introduction”. In: ---. (ed.) The classic fairy tales: a norton critical edition. New York: W. W. Norton & Company Inc, 1999, pp. ix-xviii.
WARNER, Marina. From the beast to the blonde: on fairy tales and their tellers. New York: The Noonday Press, 1999.
WILSON, Sharon Rose. Margaret Atwood`s fairy-tale sexual politics. MississipiUniversity Press of Mississipi, 1993. ZIPES, Jack. When dreams come true: classical fairy tales and their tradition. NewYork: Routledge, 1999.

sexta-feira, dezembro 03, 2004

Os Três filhos do Rei

Um grande rei tinha três filhos e queria escolher um deles para ser seu herdeiro. Isso era muito difícil, pois os três eram muito inteligentes e corajosos. E eram trigêmeos, tendo portanto a mesma idade, assim não havia maneira de decidir. Então ele perguntou a um grande sábio, que deu uma idéia. O rei foi para casa e chamou os três filhos. E a cada um deu uma sacola com sementes de flores, e os avisou que estava indo a uma longa viagem: “Levará alguns anos – um, dois, três, talvez mais. E isso é uma espécie de teste para vocês. Terão que me devolver estas sementes quando eu voltar. Aquele que proteger melhor será o meu herdeiro”. E partiu.
O primeiro filho pensou: “O que devo fazer com essas sementes?”. Ele as trancou num cofre de ferro, pois quando o pai voltasse, precisaria devolve-las como eram.
O segundo filho pensou: “Se eu as trancar como meu irmão fez, elas morrerão. E uma semente morta não é mais uma semente.” Então foi ao mercado, vendeu-as e guardou o dinheiro. E pensou:
“Quando meu pai voltar, irei ao mercado, comprarei novas sementes e devolverei a ele sementes melhores que as primeiras”.
Mas o terceiro foi ao jardim e jogou as sementes em todos os lugares.
Após três anos, quando o pai voltou, o primeiro filho abriu seu cofre. As sementes estavam mortas, cheirando mal. E o pai disse: “O que? São essas as sementes que te dei? Elas tinham a possibilidade de desabrochar em flores e exalar um maravilhoso perfume – e essas estão cheirando mal! Essas não são as minhas sementes!” O filho insistiu que eram as mesmas, e o pai falou: “Você não é digno de ser meu herdeiro, és muito materialista”.
O segundo filho correu ao mercado, comprou sementes, voltou para casa e as apresentou ao pai, que disse: “Mas essas não são as mesmas. Sua idéia foi melhor que a do seu irmão, mas você ainda não é capaz como gostaria que fosse. Você é um psicólogo”.
Ele foi ao terceiro, com grande esperança e também com apreensão: “O que ele fez?”.E o terceiro filho o levou ao jardim e havia milhares de plantas florescendo, milhares de flores à toda volta. E o filho disse: “Estas são as sementes que você me deu. Logo que estiverem no ponto colherei e devolverei a você!”. O pai disse:
“Você é o meu herdeiro. Essa é a maneira de agir com as sementes!”.

Contada pela minha grande amiga Joana Abreu (Brasília – DF) em Dezembro de 2000 na cidade de São Mateus – ES e recontada por James Silva.
Essa história dedico ao meu pai, (meu contador de histórias favorito e predileto) como presente de aniversário e por ter me ensinado muito sobre as sementes.

As duas vizinham que não paravam de brigar

"Pois viver deveria ser - até o último pensamento e o derradeiro
olhar - transformar-se". (Lya Luft)

Duas vizinhas que viviam em pé de guerra. Não podiam se encontrar na rua que era briga na certa. Depois de um tempo, uma delas descobriu o verdadeiro valor da amizade e resolveu que iria fazer as pazes com a outra. Ao se encontrarem na rua, muito humildemente, disse dona Maria: "Minha querida Antonia, já estamos nessa desavença há anos e sem nenhum motivo aparente. Estou propondo para você que façamos as pazes e vivamos como duas boas e velhas amigas."
Dona Antonia, na hora, estranhou a atitude da velha rival e disse que iria pensar no caso. Pelo caminho foi pensando, pensando pensando...
"Essa dona Maria não me engana, está querendo me aprontar alguma coisa e eu não vou deixar barato.Vou mandar-lhe um presente para ver sua reação." Chegando em casa preparou uma bela cesta de presentes, cobrindo-a com um lindo papel, mas encheu-a de bosta de vaca. "Eu adoraria ver a cara da dona Maria ao receber esse 'maravilhoso' presente. Vamos ver se ela vai gostar dessa." Mandou a empregada levar o presente à casa da rival, com um bilhete:
"Aceito sua proposta de paz e para selarmos nosso compromisso,envio-te esse lindo presente."
Dona Maria estranhou o presente, mas não se exaltou e pensou: "Que ela está propondo com isso? Não estamos fazendo as pazes? Bem, deixa pra lá."

Alguns dias depois Dona Antonia atende a porta e recebe uma linda cesta de presentes, coberta com um belo papel. "É a vingança daquela asquerosa da Maria. Que será que ela me aprontou!" - pensa ela.
Qual não foi sua surpresa ao abrir a cesta e ver um lindo arranjo das mais belas flores que podiam existir num jardim, e um cartão com a seguinte mensagem: "Estas flores é o que te ofereço em prova da minha amizade. Foram cultivadas com o esterco que você me enviou e que virou um excelente adubo para o meu jardim. Afinal, cada um dá o que tem em abundância em sua vida."

quarta-feira, dezembro 01, 2004

A Loja da Dona Raposa

Raposa é um animal muito sabido e muito bom de fazer negócios (comprar, trocar e vender coisas).
Seu Tavares era uma raposa que estava com problemas com seus negócios, já estava até pensando em fechar sua lojinha na floresta:
- Ué, Seu Tavares, você está fechando sua lojinha?
- Oh! Onça Tonha, aqui na floresta só tem bicho doido que faz encomenda doida!
- Ah, é!?
- Olha só, o Dante Elefante me encomendou um cachecol!
- E aí?
- E aí, como é que eu vou fazer um cachecol do tamanho do pescoço de um elefante! (falar da lã)
- É mesmo! E o que mais?
- E a Girafa que me pediu uma gravata para ir a um casamento, não poderia ser uma gravata borboleta igual a do pingüim?! (falar do bicho-da-seda)
- Que complicação!
- E a cobra então, que quer uma bolsa!
- E o que tem de mau nisso, Seu Tavares?
- O que tem de mau é que a bolsa que ela quer é a tiracolo e ela nem tem ombro pra pendurar a bolsa!
- AH! AH! AH! Essa é boa! Mas, deixa isso pra lá e me conte se não apareceu uma encomenda razoável!
- Ah! Também não posso dizer que todo bicho é biruta. O sapo encomendou pastilhas pra garganta pois estava desafinando no coral.
- Tá vendo Seu Tavares, também tem um lado bom!
- É, isso eu não posso negar! O Bodão pediu um barbeador e o Gambá pediu um desodorante!
- Ah! Até que enfim, parece que vamos tem um ar mais puro na mata!
- Você acredita que o pica-pau encomendou uma furadeira!
- Que preguiçoso!
- E a centopéia!
- Aquela que anda rebolando?
- Isso mesmo, imagine que ela resolveu usar calça!
- Virgem Santa!
- Não arrumo aranhas para fazer o serviço!
- É Seu Tavares, é difícil!
- Se continuar assim, só de pensar nas novas encomendas não consigo nem dormir! Imagine se a vaquinha leiteira resolver usar sutiã, vai sobrar pra mim!
- Ah! Seu Tavares, justo agora que eu ia fazer uma encomenda!
- E o que é que você ia encomendar?
- Sabe o que é, é que eu arrumei um novo namorado que me chamou de sardenta, e eu ia encomendar um creme para retirar as sardas!
- Ah! Não!!!

(adaptação da obra A loja da Dona Raposa, de Hardy Guedes)

Crianças devem ser estimuladas a ler

Há diferenças significativas entre as crianças que recebem e as que não recebem estímulo para a leitura. Aquelas que crescem em ambientes onde não se criam condições para a leitura só narram fatos do cotidiano, possuem repertório pobre, reproduzem apenas histórias mais conhecidas, empregam frases segmentadas e têm baixo nível criativo, enquanto aquelas estimuladas a ler acrescentam fatos novos às narrativas, apresentam repertório variado, têm texto oral estruturado, com histórias com início, meio e fim. Também apresentam conteúdos gramaticais mais complexos e temas criativos.
Pode-se concluir que o ato de ouvir histórias além de desenvolver o interesse pela leitura:
enriquece o vocabulário;
estimula a inteligência;
age de forma educativa;
desenvolve o pensamento da criança, sua sensibilidade e imaginação;
cria condições para o aprimoramento do ato de memorizar e prestar atenção; e
ensinam a criança a comparar, a lembrar e preparar-se para a vida .

A LIBÉLULA


Num lugar muito bonito, onde havia árvores, flores e um lindo lago, certo dia surgiu um casulo. Quando ele se rompeu, de dentro saiu voando uma libélula. Ao sair do casulo ela ficou tão encantada com o lugar, que voou por cada pedaço de tudo o que seus olhos conseguiam mirar. Brincou nas flores, nas árvores, no lago, nas nuvens. Aliás ela adorou brincar com as nuvens. Eram macias. Perdeu um longo tempo com elas. Quando já tinha conhecido tudo, no alto de uma montanha, avistou uma casa. A casa do homem. Ela havia de conhece-lo. Foi voando pra lá. Voou, que voou que voou... e posou na janela da cozinha. Nesse dia, uma grande festa era preparada para a filha do dono da casa. Um homem com um chapéu branco, grande, dava ordens para os empregados, mas a libélula não se preocupou com isso. Brincou entre os cristais, se viu na bandeja de prata, explorou cada pedacinho daquele novo mundo. Ao olhar para a mesa, avistou uma tigela cheia de nuvens. Não resistiu, mergulhou na tigela, pois, tinha adorado brincar nas nuvens. Mas quando ela mergulhou...ahhhhhhhh...aquilo não eram nuvens, eram claras de neve que o cozinheiro havia preparado para fazer o bolo. Foi ficando toda grudada, e quanto mais ela se mexia tentando escapar... mais ela afundava. A pobre libélula começou a rezar ao DEUS PROTETOR DOS INSETOS VOADORES, pedindo que se a libertasse, dedicaria o resto de seus dias na ajuda dos outros insetos voadores. Rezava e pedia mas parecia que era em vão, continuava a afundar. Dizia ela em voz de libélula apavorada: SENHOR DEUS, SE O SENHOR ME TIRAR DESSA ENRASCADA, PROMETO QUE DEDICAREI TODOS OS DIAS DE MINHA VIDA NA AJUDA DE OUTROS INSETOS VOADORES. A coitada já estava quase toda dentro da clara de neve quando o chefe da cozinha voltou cantando: LA LA LA LA LALALA LARÁ! Olhou para dentro da tigela e disse: OHHH! Um ponto preto na minha massa branca? OHHH! Pegou uma colher, enfiou na tigela, pegou a libélula e a atirou pela janela... Zuuummmm, e lá se foi a libélula janela afora, zuuummmm... pooofttt... caiu na grama. O sol estava quente e a massa começou a secar em seu corpo. Limpou, limpou, limpou, limpou (Ufa!!!) até que limpa (e cansada) se lembrou da promessa que havia feito ao DEUS PROTETOR DOS INSETOS VOADORES, e disse: Senhor Deus, bem sei que prometi (se conseguisse sair daquela enrascada), dedicar todos os dias de minha vida na ajuda dos outros insetos voadores. Maaasss (aahhhh!!!) agora estou um pouco cansaaaada. Façamos um trato, descanso um pouquinho e depois cumpro o prometido.
Dormiu. Mas o que ela não sabia, e talvez você não saiba, assim como eu não sabia, é que as libélulas vivem apenas um dia. Naquela tarde, com o sol a bater em seu corpo, num pedaço de grama macia, ela não voltou a acordar.Assim me contaram e assim contei pra vocês. E quem quiser que conte três.

(Recontada por James Silva – Tradição Oral)
Encontrei essa história por acaso em 1997. Passei a contá-la a partir daí inúmeras vezes. Já é bem diferente do que me contaram. Acontece sempre quando o contador – nesse processo bi-lateral (história-contador, contador-história) – começa a contar determinada(s) história(s), acabar colocando muito dele nela. Acaba reescrevendo a história muitas vezes. Absorvendo. Como uma pele. Uma mesma história não é a mesma, de contador para contador. Encontrei uma versão desse conto em um site certa vez. Para quem encontra-la verá que há diferenças significativas na narrativa. Essa é uma das magias de se contar histórias: cada um conta ao seu modo, do seu jeito, da sua forma e para quem quiser. Viva!

CONTATOS DE TODO MUNDO

James Silva
Ator / Arte-Educador / Contador de Histórias
jamesquartum@ig.com.br
(55) (11) 8251-8623
Oficinas / Contação de Histórias / Assessoria em Projetos Culturais
Mauá - SP - Brasil

terça-feira, novembro 30, 2004

MARIA VAI COM AS OUTRAS

Era uma vez uma ovelha chamada Maria. Aonde as outras ovelhas iam, Maria ia também. As ovelhas iam para baixo. Maria ia também. As ovelhas iam para cima. Maria ia também.
Maria ia sempre com as outras.
Um dia, todas as ovelhas foram para o Pólo Sul. Maria foi também. Ai! Que lugar frio! As ovelhas pegaram uma gripe!!! Maria pegou uma gripe também. Atchim!
Depois, todas as ovelhas foram para o deserto. Maria foi também. Ai que lugar quente! As ovelhas desmaiaram. Maria também. Uf!Puf!
Um dia todas as ovelhas resolveram comer salada de jiló. Maria comia também. Que horror! Foi, quando, de repente, Maria pensou: “Se eu não gosto de jiló, por que é que eu tenho de comê-lo?”.
Maria pensou, suspirou, mas continuou fazendo o que as outras faziam.
Até que as ovelhas resolveram pular do alto da montanha para dentro da lagoa. Todas as ovelhas pularam.
Pulava uma ovelha, não caía na lagoa, caía na pedra, quebrava o pé e chorava: mé!
E assim, quarenta e duas ovelhas pularam, quebraram o pé e choraram: mé! mé!
Chegou a vez de Maria pular. Ela deu uma requebrada, entrou num restaurante e comeu uma feijoada.
Agora, mé, Maria vai para onde caminha o seu pé.



( Livre Adaptação de Maria-vai-com-as-outras de Sylvia Orthof)

O Rouxinol e a Rosa (Oscar Wilde)



- Ela disse que dançaria comigo se eu lhe trouxesse rosas vermelhas – lastimou-se o jovem Estudante -, porém em todo o meu jardim não existe uma única rosa vermelha.
De seu ninho no grande carvalho o Rouxinol ouviu-o, olhou por entre as folhagens e ficou pensando.
- Nem uma única rosa vermelha em todo meu jardim! – chorou o Estudante, e seus lindos olhos ficaram marejados de lágrimas. – Ai, como a felicidade depende de pequenas coisas! Já li tudo que escreveram os homens mas sábios, conheço todos os segredos da filosofia, mas por falta de uma rosa vermelha minha vida esta desgraçada.
- Finalmente encontro um verdadeiro amante – disse o Rouxinol. – Tenho cantado esse ser noite após noite, mesmo sem conhecê-lo: noite após noite contei sua história às estrelas, e só agora o encontrei. Seus cabelos são escuros como a flor de jacinto, e seus lábios rubros como a rosa de seus desejos, porém a paixão tornou seu rosto pálido como marfim e a tristeza selou sua testa.
- O Príncipe dá um baile amanhã à noite – murmurou o jovem Estudante -, e o meu amor estará entre os presentes. Se eu lhe levar uma rosa vermelha ela dançará comigo até de madrugada. Se eu lhe der uma rosa vermelha eu a terei em meus braços, e ela deitará sua cabeça sobre o meu ombro, com sua mão presa na minha. Mas não há uma única rosa vermelha em meu jardim, de modo que ficarei abandonado em meu lugar e ela há de passar por mim. Ela nem irá me notar, e meu coração ficará partido.
- Aí está, de fato, um verdadeiro amante – disse o Rouxinol. – Ele sofre tudo o que eu canto: o que é alegria em mim, para ele é dor. Sem dúvida o amor é uma coisa maravilhosa. Ele é mais precioso do que a esmeralda e mais refinado que a opala. Nem pérolas e nem granadas podem comprar, e nem é ele exposto nos mercados. Ninguém pode comprá-lo de mercadores, nem pode ser pesadonas balanças feitas para pesar ouro.
- os músicos vão ficar em sua galeria – disse o jovem Estudante. – Tocarão seus instrumentos de cordas, e o meu amor dançará ao som da harpa e do violino. Ela irá dançar com tal leveza que seus pés nem tocarão o chão, e os cortesãos, com suas roupas alegres, ficarão amontoados em volta dela. Porém comigo ela não irá dançar, porque não lhe dei um rosa vermelha – e atirou-se na relva, enterrou o rosto entre as mãos, e chorou.
- Por que é que ele esta chorando? – perguntou o Lagartinho Verde, ao passar por ele com o rabinho empinado par ao ar.
- Por que será? – disse a Borboleta, que estava esvoaçando atrás de um raio de sol.
- É mesmo, por que será? – sussurrou uma Margarida a seu vizinho, com uma voz suave e baixinha.
- Está chorando por uma rosa vermelha – disse o Rouxinol.
Mas o Rouxinol compreendeu o segredo da tristeza do Estudante, e ficou em silêncio debaixo do carvalho, pensando sobre o mistério do Amor.
Repentinamente ele abriu as asas para voar e subiu para os ares, passando pelo bosque como uma sombra e, como uma sombra, deslizar através do jardim.
Bem no centro do gramado havia uma linda Roseira e, ao vê-la, o Rouxinol voou para ela e pousou em um ramo.
- Dê-me uma rosa vermelha – exclamou ele – que eu lhe cantarei minha mais doce canção.
Mas a roseira não estava interessada.
- Minhas rosas são brancas – respondeu. – Brancas como a espuma do mar, e mais brancas do que a neve das montanhas. Mas vá até minha irmã que cresce junto ao relógio de sol, que talvez ela lhe dê o que quer.
E então o Rouxinol voou para a Roseira que crescia ao lado do velho relógio de sol.
- Se você me der uma rosa vermelha – gritou ele -, eu canto para você minha mais doce canção.
Mas a Roseira sacudiu a cabeça.
- Minhas rosas são amarelas – respondeu ela -, tão amarelas quanto os cabelos da sereia em um trono de âmbar, e mais amarelas do que os junquilhos que florescem no campo do ceifador aparecer com sua foice. Mas pode ir até a minha irmã que cresce debaixo da janela do Estudante, que talvez ela lhe dê o que está procurando.
E então o Rouxinol voou até a Roseira que crescia debaixo da janela do Estudante.
Se você me der uma rosa vermelha – gritou ele -, eu canto para você minha mais doce canção.
Mas a Roseira sacudiu a cabeça.
Minhas rosas são vermelhas – respondeu ela -, vermelhas como os pés da bomba e mais vermelhas do que os grandes leques de coral que abanam sem parar nas cavernas do oceano. Mas o inverno congelou minhas veias, a geada cortou meus botões, a tempestade quebrou meus galhos, e não terei uma só rosa este ano.
- Eu só quero uma rosa – gritou o Rouxinol. – Apenas um rosa vermelha! Não haverá nenhum jeito de consegui-la?
- Só há um – respondeu a Roseira -, mas é tão terrível que não ouso contar.
- Pode contar – disse o Rouxinol -, eu não tenho medo.
Se quiser uma rosa vermelha – disse a Roseira -. você terá de construí-la de música ao luar, tingindo-a com o sangue do seu próprio coração. Terá de cantar para mim com seu peito de encontro a um espinho. Terá de cantar para mim a noite inteira, e o espinho terá de furar o seu coração, e o sangue que o mantém vivo terá de correr para minhas veias, transformando-se em meu sangue.
- A morte é um preço alto para se pagar por uma rosa vermelha – exclamou o Rouxinol -, e a Vida é muito cara a todos. É tão agradável ficar parado no bosque verde, olhar o Sol em seu carro de ouro, e Lua em seu carro de pérolas. Doce é o perfume do pilriteiro, doces são as campânulas que se escondem no vale, e as urzes que balançam nas colinas. No entanto, o Amor é melhor do que a Vida, e o que é o coração de um passarinho comparado como o coração de um homem?
Com isso, ele abriu as asas e lançou vôo para os ares. Passou célebre sobre o jardim e como uma sombra deslizou pelo bosque.
O jovem Estudante ainda estava deitado na relva, onde ele o havia deixado, e as lágrimas nem haviam secado de seu lindo rosto.
- Fique contente – canto-lhe o Rouxinol – fique contente. Você terá sua rosa vermelha. Eu a construirei com minha música ao luar, tingindo-a com o sangue do meu próprio coração. E só o que peço em troca é que você seja um amante fiel e verdadeiro, pois o Amor é mais sábio do que a Filosofia, embora ela seja sábia, e mais poderoso do que o Poder, embora este seja poderoso. Cor das chamas são suas asas, e cor das chamas é o seu corpo. Seus lábios são doces como o mel, seu hálito como o incenso.
O Estudante olhou para o alto e ouviu, mas não compreendeu o que o Rouxinol dizia, porque só conhecia as coisas quem vêm escritas nos livros. Mas o Carvalho compreendeu e ficou triste, porque gostava muito do Rouxinol, cuja família tinha ninho em seus ramos.
- Cante-me uma última canção – sussurrou ele -,vou sentir-me tão só quando você se for.
Então o Rouxinol cantou par ao Carvalho, e sua voz parecia a água quando sai saltitando de um jarro de prata.
Quando a canção acabou, o Estudante se levantou e tirou do bolso um caderninho de notas e um lápis.
- Ele tem forma – disse para si mesmo, enquanto caminhava pelo bosque -, isso ninguém pode negar. Mas será que tem sentimentos? Temo que não. Na verdade, deve ser como a maioria dos artistas: é todo estilo, sem qualquer sinceridade. Ela jamais se sacrificaria pelos outros. Só pensa em música, e todo mundo sabe que as artes são egoístas. Mesmo assim, é preciso admitir que a sua voz tem algumas notas lindas. Que pena não significarem, nem qualquer utilidade.
E foi para o seu quarto, onde se deitou em seu pequeno catre e, depois de pensar por algum tempo em sua amada, adormeceu.
Quando a lua começou a brilhar no céu, o Rouxinol voou para a Roseira e encostou o peito no espinho. Durante toda a noite ele cantou, como o peito no espinho, enquanto a fria Lua de cristal curvara-se para ouvir. Ele cantou a noite inteira e o espinho entrava cada vez mais fundo sem eu peito, enquanto seu sangue escorria para fora.
Primeiro ele cantou sobre o nascimento do amor no coração de um rapaz e uma moça. E no ramo mais alto da Roseira foi florescendo uma rosa maravilhosa, pétala por pétala, à medida que uma canção seguia outra. A princípio ela era pálida como a névoa que parira sobre o rio, pálida como os pés da manhã e prateada como as asas da madrugada. Como a sombra de uma rosa em um espelho de prata. Como a sombra de uma rosa em uma lagoa, assim era a rosa que floresceu no ramo mais alto da Roseira.
Mas a Roseira ficava gritando para o Rouxinol se apertar cada vez mais de encontro ao espinho.
- Aperta mais, Rouxinol! – gritava a Roseira -, se não o dia chega antes que a rosa esteja pronta.
E o Rouxinol fazia cada vez mais pressão contra o espinho, e cantava cada vez mais alto, pois estava cantando o nascimento da paixão entre a alma de um homem e uma donzela.
E um delicado enrubescer rosado apareceu nas folhas da rosa, como o enrubescer no rosto do noivo quando beija os lábios da noiva. Mas o espinho ainda não havia atingido o coração, de modo que o coração da rosa permanecia branco, pois só o sangue do coração de um Rouxinol pode deixar rubro o coração de uma rosa.
E a Roseira gritava para o Rouxinol enfiar mais e mais o peito de encontro ao espinho.
- Mais ainda, pequeno Rouxinol – gritava a Roseira -, se não o dia chega antes de a rosa estar pronta.
E o Rouxinol foi se apertando cada vez mais de encontro ao espinho, e o espinho tocou-lhe o coração, e um terrível golpe de dor passou por toda a avezinha. A dor era horrível, horrível, e a canção foi ficando cada vez mais enlouquecida, pois agora ele cantava o Amor que ficava perfeito com a Morte, o Amor que não morre no túmulo.
E a rosa maravilhosa ficou rubra, como a rosa do céu do oriente. Rubro era todo o círculo de pétalas, e rubro como um rubi era seu coração.
Mas a voz do Rouxinol foi ficando mais fraca, suas asinhas começar a se debater, e uma névoa cobriu seus olhos. Cada vez mais fraca foi ficando sua canção, e ele sentiu alguma coisa que sufocava sua garganta.
E então ele soltou uma última porção de música. A Lua branca ouvi-a e se esqueceu da madrugada, ficando no céu. A rosa também ouviu, estremeceu toda em êxtase, e abriu suas pétalas ao ar frio da manhã. O eco levou-a até sua caverna púrpura nas colinas e despertou de seus sonhos os pastores que dormiam. Ela flutuou até os juncos dos rio, e estes levaram a mensagem par ao mar.
- Veja, veja! – gritou a Roseira. – Agora a Rosa está pronta.
Mas o Rouxinol não respondeu, pois tinha caído morto no meio da relva, como o espinho atravessado no peito.
Ao meio-dia o Estudante abriu sua janela e olhou para fora.
- Ora, mas que sorte maravilhosa! – exclamou ele. – Eis ali uma rosa vermelha. Jamais vi rosa como essa em toda a minha vida. É tão bonita que estou certo de que deve ter algum nome em latim! – e, debruçando-se, colheu-a
Depois ele botou o chapéu e correu para a casa do Professor, com a rosa na mão.
A filha do Professor estava sentada na porta, enrolando um fio de seda azul em um novelo, como o cachorrinho deitado a seus pés.
Você disse que dançaria comigo se eu lhe trouxesse um a rosa vermelha – exclamou o Estudante. – Aqui está a rosa mais vermelha do mundo inteiro. Use-a junto ao seu coração hoje à noite, e enquanto estivermos dançando eu lhe direi o quanto a amo.
Mas a moça franziu o cenho.
- Receio que ela não combine com o meu vestido respondeu. – E, além do mais, o sobrinho do Camerlengo mandou-me uma jóia de verdade, e todos sabem que as jóias custam muito mais do que as flores.
- Você é muito ingrata. – disse o Estudante com raiva, e atirou a rosa na rua, onde ela caiu em uma sarjeta e uma carroça acabou passando por cima.
- Ingrata? – disse a moça. – Pois fique sabendo que você é muito rude e, afinal, quem é você? Apenas um estudante. Ora, não creio sequer que tenha fivelas de prata para seus sapatos, como as que tem o sobrinho do Camerlengo – e, levantando-se de sua cadeira, entrou na casa.
- Que coisa tola é o amor! – disse o Estudante, enquanto se afastava. – Não tem a metade da utilidade da Lógica, pois não prova nada, e fica sempre dizendo a todo mundo coisas que não vão acontecer, fazendo com que acreditemos em coisas que não são verdade. Enfim, não é nada prático e, como hoje em dia ser prático é o importante, vou voltar à Filosofia e estudar Metafísica.
E voltou para seu quarto, onde pegou um enorme livro todo empoeirado e começou a ler.



(Oscar Wilde - Oscar Fingall O'Flahertie Wills Wilde, um dos maiores escritores do século XIX. Nascido em Dublin, Irlanda. Era filho de um médico e uma escritora e desde criança sempre esteve rodeado pelos maiores intelectuais da época)

domingo, novembro 28, 2004

O Sapo Apaixonado

Certo dia um sapo acorda se sentindo muito estranho. Sentia uns calafrios, outra hora umas ondas de calor e já não sabia se estava alegre ou triste. Passava as noites perambulando. Dentro do seu peito tinha alguma coisa que fazia tum-tum de forma descompassada, feito uma bateria de escola de samba sem ensaio. Sabendo que o Seu Coelho era um animal muitíssimo letrado, resolveu consultá-lo para ver se descobria qual era o seu mal.
- Seu Coelho, não sei o que está havendo comigo... 
- Ah, Seu Sapo, o que faz tum-tum no seu peito é o seu coração, o meu também faz e não estou doente!
- Mas, Seu Coelho, às vezes ele bate mais depressa que o normal... Ele faz assim: um-dois, um-dois...
- Ahá!!!!! Você está apaixonado!!!!!!
- APAIXONADO ??????????????? – espantou-se o sapo. Uau! Estou apaixonado!!!!!!!
O sapo saiu da casa do Seu Coelho todo animado, até que pensou: - Ué, mas por quem será que estou apaixonado??? Pela Sapa não é! Pela perereca não é! Pela macaca, girafa, lagarta? Também não! Ah, já sei!! Estou apaixonado pela Dona Pata!! Ela é tão linda e tão simpática!! Mas será que ela vai gostar de mim?? Eu sou todo verde e ela tão branquinha... branca...
Pensando em agradar sua amada, o sapo foi até sua casa e desenhou um lindo coração para dar à Dona Pata. Pegou também um buquê de flores do campo para entregar junto com o desenho, mas faltou coragem. Seu coração batia forte: tum-tum, tum-tum, tum-tum. Então ele foi até a casa dela, durante a noite, mas a falta de coragem não deixou ele entregar pessoalmente. Então, esperou que ela se deitasse, que a luz se apagasse, que a noite chegasse e deixou o buquê na soleira, e o coração ele colocou por debaixo da porta . A noite passou, a pata acordou e quando viu o desenho na manhã seguinte, ficou toda encantada:- Meu Deus, que coisa mais linda!!!!! E olhe aqui na soleira, um buquê de flores!!!! Quem será que está me mandando estes presentes????
De tanto pensar na Dona Pata, o sapo apaixonado já não comia, já não dormia, caiu de cama !!!!! Os animais todos da floresta estavam preocupados com ele, e Seu Coelho convidou a Dona Pata para visitá-lo.
Chegando lá, ela foi logo cuidando do Seu Sapo, levou um prato de sopa, um suco de laranja, ajeitou o travesseiro dele dizendo:
- O que está havendo Seu Sapo?? Estou muito preocupada, pois gosto muito de você e...
O sapo não deixou a Pata terminar. Encheu-se de coragem e foi falando:
- Pata querida, eu também gosto muito de você, aliás, estou apaixonado, e é por isso que estou doente.
Deste dia em diante, o Sapo e a Pata começaram a namorar, e até hoje o coração dos dois está fazendo tum-tum, só que agora juntinhos. E do casamento do Sapo com a Pata, nasceram os Sapatos e as Sapatas
!!! 

Livre adaptação do livro "O sapo apaixonado" de Max Velthuijs - Recontado por James Silva