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sábado, junho 25, 2005

A Primeira Só (Marina Colasanti)




Era linda, era filha, era única. Filha de rei. Mas de que adiantava ser princesa se não tinha com quem brincar?
Sozinha, no palácio, chorava e chorava. Não queria saber de bonecas, não queria saber de brinquedos. Queria uma amiga para gostar.
De noite o rei ouvia os soluços da filha. De que adiantava a coroa se a filha da gente chora à noite? Decidiu acabar com tanta tristeza. Chamou o vidraceiro, chamou o moldureiro. E em segredo mandou fazer o maior espelho do reino. E em silêncio mandou colocar o espelho ao pé da cama da filha que dormia.
Quando a princesa acordou, já não estava sozinha. Uma menina linda e única olhava para ela, os cabelos ainda desfeitos do sono. Rápido saltaram as duas da cama. Rápido chegaram perto e ficaram se encontrando. Uma sorriu e deu bom dia. A outra deu bom dia sorrindo.
- Engraçado – pensou uma - , a outra é canhota.
E riram as duas.
Riram muito depois. Felizes juntas, felizes iguais. A brincadeira de uma era a graça da outra. O salto de uma era o pulo da outra. E quando uma estava cansada, a outra dormia.
O rei, encantado com tanta alegria, mandou fazer brinquedos novos, que entregou à filha numa cesta. Bichos, bonecas, casinhas e uma bola de ouro. A bola no fundo da cesta. Porém tão brilhante, que foi o primeiro presente que escolheram.
Rolaram com ela no tapete, lançaram na cama atiraram para o alto. Mas quando a princesa resolveu jogá-la nas mãos da amiga, a bola estilhaçou jogo e amizade.
Uma moldura vazia, cacos de espelho no chão.
A tristeza pesou nos olhos da única filha do rei. Abaixou a cabeça para chorar. A lágrima inchou, já ia cair, quando a princesa viu o rosto que tanto amava. Não um só rosto de amiga, mas tantos rostos de tantas amigas. Não na lágrima que logo caiu mas nos cacos que cobriam o chão.
- Engraçado são canhotas – pensou.
E riram.
Riram por algum tempo depois. Era diferente brincar com tantas amigas. Agora podia escolher. Um dia escolheu uma e logo se cansou. No dia seguinte preferiu outra, e esqueceu-se dela logo em seguida. Depois outra e outra, até achar que todas eram poucas. Então pegou uma, jogou contra a parede e fez duas. Cansou das duas, pisou com o sapato e fez quatro. Não achou mais graça nas quatro, quebrou com o martelo e fez oito. Irritou-se com as oito partiu com uma pedra e fez doze.
Mas duas eram menores do que uma, quatro menores do que duas, oito menores do que quatro, doze menores do que oito.
Menores cada vez menores.
Tão menores que não cabiam em si, pedaços de amigas com as quais não se podia brincar. Um olho, um sorriso, um pedaço de si. Depois, nem isso, pó brilhante de amigas espalhado pelo chão.
Sozinha outra vez a filha do rei.
Chorava Nem sei.
Não queria saber das bonecas, não queria saber dos brinquedos.
Saiu do palácio e foi correr no jardim para cansar a tristeza.
Correu, correu, e a tristeza continuava com ela. Correu pelo bosque, correu pelo prado. Parou à beira do lago.
No reflexo da água a amiga esperava por ela.
Mas a princesa não queria mais uma única amiga, queria tantas, queria todas, aquelas que tinha tido e as novas que encontraria. Soprou na água. A amiga encrespou-se, mas continuou sendo uma.
Então a linda filha do rei atirou-se na água de braços abertos, estilhaçando o espelho em tantos cacos, tantas amigas que foram afundando com ela, sumindo nas pequenas ondas com que o lago arrumava sua superfície.

A DOR

(Andrea Murony)

- Estou com uma dor no céu da boca...
- Hããã?
- É. Dor no céu da boca. Na verdade é uma espécie de queimação, tipo uma azia buco-celestial, sabe ? Desde ontem.
- De onde é que você tirou isso?
- Como assim de onde tirei isso? De mim, ué, do meu corpo. Provavelmente
dos meus centros nervosos. Sou uma mulher sensível, pô!
- Você está louca.
- Louca por quê? Me dê uma razão, uma unicazinha, que comprove que meu
céu da boca não possa doer.
- Ah, razão, assim, baseada em fatos concretos, eu não tenho não; mas é que nunca ouvi falar em alguém que tenha tido dor no céu da boca.
- Nunca ouviu porque é uma inculta.
- Se você vai levar a conversa pra esse lado...
- Desculpa, foi apenas uma constatação. Veja só, eu tenho uma amiga, por exemplo, que vira e mexe tem dores nas sobrancelhas.
- Você está me tirando...
- Não estou, não. Não é sempre, ela me disse, mas periodicamente as suas sobrancelhas doem.
- Imagine, isso é tudo conversa mole.
- Não estou entendendo porque tanto ceticismo. E gratuito, heim?! Analisemos: as sobrancelhas ficam no rosto, não ficam?
- Ficam.
- E no rosto, por trás da pele, têm veias com sangue, não?
- Tem, mas o que é que tem a ver a veia com a dor?
- Como o que é que tem a ver?? Tem tudo a ver. Ainda mais que as sobrancelhas são vizinhas das têmporas que são, todo mundo sabe, muito sensíveis.
- Você já está delirando. Pra mim essa conversa não faz o menor sentido.
- Claro que faz, Val. Suponhamos que a raiz da sobrancelha encrave ou até quem sabe inflame, heim, heim? Não vai doer, é?
- Encravar vá lá, mas inflamar? Por que diabos haveria de uma raiz de sobrancelha inflamar?
- E eu é quem sei? Quem sou eu, nesta vida de mistérios, para decifrar os recôncavos segredos do corpo humano? Os desconhecidos caminhos pelos quais...
- Tá bom, tá bom, cancela a metafísica. Mas, me diga, e o céu da boca?
- Ué, também faz parte do corpo humano, tem pele e por trás da pele têm veias...
- Lá vem você com essa história de veias de novo. E o que é que faz doer? Não venha me dizer que é um dente encravado...
- Tsc, tsc, tsc, assim não há a menor condição de continuar a conversar com você. Quer saber? Vou desvendar, e vai ser agora, quais são todos os mecanismos que movem a dor pelo espetacular corpo humano e comprovar a minha teoria.
Depois de alguns minutos, ela volta, absorta, um dicionário entre os braços.
- Ahá! Ouça bem o que vou lhe dizer: “Dor: sensação desagradável, variável em intensidade e em extensão de localização, produzida pela estimulação de terminações nervosas especiais.” Heim? Pegou?
- Peguei o quê
- Como o quê?
- É só isso?
- Só isso, só isso, que é que você queria?
- Ué, pra quem saiu daqui toda emplumada, clamando aos quatro ventos que iria desvendar todos os mecanismos da dor e sei lá o que mais, me aparece agora com uma reles definição.
- Reles não senhora, que esse dicionário é conceituadíssimo.
- Está bom, mas e daí? Que raio isso tem com o céu da tua boca?
- Nossa senhora, heim? A gente também que explicar tudo, dá licença. Presta um pouco de atenção, se for possível. “(...) variável em extensão de localização” hãã?, “produzida pela estimulação de terminações nervosas especiais.”
- ???
- Bingo! É isso. Terminações nervosas especiais. Veja bem, não são quaisquer terminações nervosas, são somente as especiais.
- E quem disse que há terminações nervosas no céu da tua boca, quanto mais especiais? Ou lá na sobrancelha da fulana tua amiga?
- Nossa, como ás vezes é difícil conviver com a ignorância alheia. É claro que há terminações, senão não haveria de doer. Capitte?
- Mas pra mim não dói mesmo, acho que isso é tudo fruto dessa tua imaginação desarvorada. Mas suponhamos, olha só, eu não estou concordando com essa sandice, estou só considerando uma situação hipotética, suponhamos que realmente sua teoria tenha cabimento, essas tais terminações nervosas seriam estimuladas por...
- Comida. Só dói quando eu como. Não toda vez que como, mas tudo começou com um doce de figo, sabe, e depois até um caldinho lá que tomei me doeu e... peraí.
- Que é que foi agora?
- Olha só, olha o que achei aqui no dicionário: “Dor cansada: dor surda.”
- O ouvido está doendo também agora? Ou será o lóbulo? Já sei, já sei, encravou a cartilagem.
- Continuando: “Dor surda: dor que nem é forte nem aguda. Dor cansada”
- Santo deus, onde vai dar esse papo? Diga aí, Sherlock, qual a grande nova conclusão?
- Essa é a descrição perfeita da minha queimação. Não dói nem forte nem aguda porque é dor cansada. Claro, só pode ser isso. A dor quer doer mas está lá meio cansada, com preguiça, então não vai doer uma cabeça ou um dente, que dão muito trabalho, sabe como é, acaba doendo mesmo um céu da boca ou uma sobrancelha que são mais fáceis, né? Dói mas não é aquela coisa assim de dor. Eu acredito que ela tenha cumprido o seu papel. É. É dor, tem de doer, doeu. Assim, simples.
- Minha nossa, você endoidou de vez.
- Endoidei nada, faz muito sentido.
- Faz, faz sim. Então é isso, tá? A conversa está muito boa, deveras construtiva, mas eu já vou indo.
- Já, tão cedo...
- Pois é, meu bom senso está começando a doer.
- Cética.Maluca.


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A Andrea é uma poeta de Mogi das Cruzes. Minha amiga pessoal e incentivadora para que eu cria-se um blog. A Dea não para de escrever: tem 3 blogs (todos muito interessantes)

Para se contar histórias é necessário simplicidade

"As crianças amam acima de tudo a espontaneidade da sua própria imaginação, que os brinquedos, quanto mais complicados e perfeitos, mais embaraçam. Ou então preferem a complicação extrema e sempre nova das coisas vivas. Se por natureza são assim, devia deixar-se obrar a natureza. Mas os adultos querem o artifício, todos os gêneros de artifício, e impõem-os às crianças, perturbando-lhes o viço da curiosidade espontânea e da livre investigação. Por isso mesmo, a ciência é o último luxo da humanidade, sendo o seu primeiro desejo."(Amadeu Amaral)
Recebi esse texto do contador de histórias Laerte Vargas. Achei tão bacana que resolvi publicá-lo no Blog.

Poemas de Manoel de Barros 2

Assim é que elas foram feitas (todas as coisas) -
sem nome.
Depois é que veio a harpa e a fêmea em pé.
Insetos errados de cor caíam no mar.
A voz se estendeu na direção da boca.
Caranguejos apertavam mangues.
Vendo que havia na terra dependimentos demais
E tarefas muitas -
Os homens começaram a roer unhas.
Ficou certo pois não
Que as moscas iriam iluminar
o silêncio das coisas anônimas.
Porém, vendo o Homem
Que as moscas não davam conta de iluminar o
silêncio
das coisas anônimas -
Passaram essa tarefa para os poetas.
............................................................................................................Conheci a poesia de Manoel de Barros através do livro "O LIVRO SOBRE NADA", presente de Ramone Abreu, que na dedicatória escreveu que era a bela oportunidade de conhecer o olhar fotográfico (de poeira e nuvens) e a alma andarilha desse autor.
Gostei tanto do livro que comprei "O LIVRO DAS IGNORÃÇAS" (diga-se de passagem - maravilhoso).

Poemas de Manoel de Barros 1

A maior riqueza do homem é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como sou - eu não aceito.
Não agüento ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora, que aponta lápis, que vê a uva etc. etc.
Perdoai.
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem usando borboletas.

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O guardador de águas
Eu sou o medo da lucidez.
Choveu na palavra onde eu estava.
Eu via a natureza como quem a veste.
Eu me fechava com espumas.
Formigas vesúvias dormiam por baixo de trampas.
Peguei uma idéias com as mãos - como a peixes.
Nem era muito que eu me arrumasse por versos.
Aquele arame do horizonte que separava o morro do céu estava rubro.
Um rengo estacionou entre duas frases.
Um descor Quase uma ilação do branco.
Tinha um palor atormentado a hora.
O pato dejetava liqüidamente ali.

....................................................................................................
Ando muito completo de vazios.
Meu órgão de morrer me predomina.
Estou sem eternidades.
Não posso mais saber quando amanheço ontem.
Está rengo de mim o amanhecer.
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.
Atrás do ocaso fervem os insetos.
Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu destino.
Essas coisas me mudam para cisco.
A minha independência tem algemas.
(in Livro das Ignorãças, Ed. Record)

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no escritório de ser inútil passo horas descascando palavras.
Vou até o caroço delas.
Ontem levei a palavra "alma" para descascar.
Descobri que é uma palavra linda, escura e de olhos baixos.
(trecho de entrevista concedida à revista Good Year, para Ana Acioly, 1989)

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"Um girassol se apropriou de Deus: foi em Van Gogh"

....................................................................................................
Nasci para administrar o à-toa
o em vão
o inútil.

Pertenço de fazer imagens.
Opero por semelhanças.
Retiro semelhanças de pessoas com árvores
de pessoas com rãs
de pessoas com pedras
etc etc.

Retiro semelhanças de árvores comigo.
Não tenho habilidade pra clarezas.
Preciso de obter sabedoria vegetal.
(Sabedoria vegetal é receber com naturalidade uma rã
no talo.)
E quando esteja apropriado para pedra, terei também
sabedoria mineral.

....................................................................................................
De repente, intrometem-se uns nacos de sonhos; Uma
remembrança de mil novecentos e onze;
Um rosto de moça cuspido no capim de borco; Um
cheiro de magnólias secas. O poeta procura compor
esse inconsútil jorro; Arrumá-lo num poema; e o
faz. E ao cabo Reluz com a sua obra. Que
aconteceu? Isto: O homem não se desvendou, nem foi
atingido: Na zona onde repousa em limos
Aquele rosto cuspido e aquele
Seco perfume de magnólias, Fez-se um silêncio branco... E, aquele
Que não morou nunca em seus próprios abismos
Nem andou em promiscuidade com os seus fantasmas
Não foi marcado. Não será marcado. Nunca será
exposto Às fraquezas, ao desalento, ao amor,
ao poema.
(POESIAS, 1956, in Gramática Expositiva do Chão)
.............................................................................................................................Experimentando a manhã dos galos

... poesias, a poesia é

- é como a boca
dos ventos
na harpa
nuvem
a comer na árvore
vazia que
desfolha a noite
raíz entrando
em orvalhos...
floresta que oculta
quem aparece
como quem fala
desaparece na boca
cigarra que estoura o
crepúsculo
que a contém
o beijo dos rios
aberto nos campos
espalmando em álacres
os pássaros
- e é livre
como um rumo
nem desconfiado...

sexta-feira, junho 17, 2005

OS CONTOS DE FADA NO PROCESSO DO DESENVOLVIMENTO HUMANO

Joana Raquel Paraguassú Junqueira Villela (UNINCOR)


INTRODUÇÃO
Podem-se perguntar as razões pelas quais a psicologia junguiana se interessa por mitos e contos de fada. O Dr. Jung, disse certa vez, que é nos contos de fada onde melhor se pode estudar a anatomia comparada da psique. Nos mitos, lendas ou qualquer outro material mitológico mais elaborado obtém-se as estruturas básicas da psique humana através da grande quantidade de material cultural. Mas nos contos de fada, existe um material consciente culturalmente muito menos específico e, conseqüentemente, eles oferecem uma imagem mais clara das estruturas psíquicas (FRANZ, 1990: 25).
Divididos entre o bem e o mal, representados por príncipes, fadas e também por monstros, lobos e bruxas apavorantes, os contos de fadas encantam as crianças e os adultos desde a sua criação, que data da época medieval. Mas a sua função não pára aí, pois além do entretenimento, transmitem ainda valores e costumes e ajudam a elaborar a própria vida através de situações conflitantes e fantásticas. “Mitos e contos de fadas expressam processos inconscientes. A narração dos contos revitaliza esses processos e restabelece a simbiose entre consciente e inconsciente” - já havia dito Carl Gustav Jung, famoso psicanalista e discípulo de Freud (apud CEZARETTI, 1989: 24).
Segundo Bettelheim, (apud CEZARETTI, 1989: 24), que analisa as histórias mais conhecidas, todos os problemas e ansiedades infantis, como a necessidade do amor, do medo e do desamparo, da rejeição e da morte, são colocados nos contos em lugares fora do tempo e do espaço, mas muito reais para crianças. A solução geralmente encontrada na história e quase sempre leva a um final feliz, indica a forma de se construir um relacionamento satisfatório com as pessoas ao redor.
Mas evidentemente, para se chegar ao final nem tudo são flores. Os contos estão repletos de problemas como a presença do bem e do mal, e partindo desse ponto pretendemos desenvolver uma reflexão sobre a fantasia e suas imagens simbólicas nos contos de fada como recursos fundamentais no desenvolvimento humano, o que constituem o conteúdo do presente trabalho.

DESENVOLVIMENTO

A origem dos contos de fadas, segundo Marie Louise Von Franz (apud GIGLIO, 1991: 3), parece residir em uma potencialidade humana arquetípica (aliás, não somente os contos de fada, como todas as fantasias). Antigamente os pastores, lenhadores e caçadores, passavam bom tempo de suas vidas sozinhos nas florestas, campos e montanhas. Acontecia que repentinamente eram assaltados por uma visão interior muito forte, que os alvoroçava por inteiro. Corriam então de volta a suas aldeias e relatavam o que lhes tinha acontecido a todos que o quisessem ouvir. Daquela visão inicial, iam-se formando lendas, e mais tarde “contos maravilhosos”. O pensamento mítico, no caso dessas visões espontâneas, é compreendido como um pensamento essencialmente pré-lógico, elementar e arquetípico. Os arquetípicos por definição, são fatores e motivos que ordenam os elementos psíquicos em imagens, de modo típico.
Como afirma Jung (apud GIGLIO, 1991: 15), os contos de fada constituíram através dos séculos instrumentos para a expressão do pensamento mítico, perpetuando-se no tempo por desempenharem uma função psíquica importante relacionada ao processo da individuação: através deles toma-se consciência e vivencia-se arquétipos do inconsciente coletivo. Esses arquétipos, por sua vez, ao serem trazidos à consciência e dramaticamente vivenciados permitem a Psique cumprir as etapas de integração progressiva do desenvolvimento da persona, conscientização da sombra, confrontação com a anima / animus e outros arquétipos, e finalmente atingir um estado onde a comunicação Ego-Self seja fluente e criativa (apud THOMPSON, 1969: 152). Ainda a partir de uma perspectiva junguiana, (apud THOMPSON, 1969: 152) existe um lado masculino e um lado feminino em cada um de nós. Se o masculino é dominante, o feminino é recalcado. O indivíduo bem conformado necessita desenvolver ambos os aspectos. Também existem quatro características principais em cada um de nós: pensamento, sentimento, sensação e intuição. Constituem pares de oponentes. Nos homens o pensamento e a sensação constituem, habitualmente, características conscientes, ao passo que o sentimento e a intuição encontram-se recalcados. Nas mulheres, sentimentos e intuição são predominantes. O lado feminino recalcado do homem é denominado anima, o lado masculino da mulher é o seu animus.
Em Franz (apud GIGLIO, 1991: 6), os contos de fada numa visão junguiana são uma representação simbólica de problemas gerais humanos e suas soluções possíveis, ou seja, as representações da fantasia são tão primárias e originais como os próprios desejos e instintos. Nos conteúdos dos contos de fada é possível ver uma projeção dos estágios originais e arquetípicos do desenvolvimento da consciência humana. Nos símbolos do inconsciente, nos sonhos e fantasias, encontram-se os mesmos princípios da expressão dos mitos e contos de fada, o que, representa um recurso fundamental no processo do desenvolvimento humano.
Conforme Araújo (1980: 39), para Jung certas lendas, mitos e símbolos têm origem na infância da humanidade em que faltando recursos intelectuais, o homem apresentava uma disposição natural para aceitar o sobrenatural. Seria assim uma necessidade psicológica de buscar soluções mágicas e de criar seres fantásticos para superar uma realidade que lhe impunha limitações. O inconsciente coletivo, guardaria assim, uma necessidade de retorno as origens do homem revivendo experiências anteriores da humanidade.
À luz da psicanálise, os contos de fadas revelam os conflitos de cada um e a forma de superá-los e recuperar a harmonia existencial. Assim a tão famosa dicotomia entre o bem e o mal, presta-se numa terapia, a uma análise mais contundente da personalidade, na qual se permite trabalhar com sentimentos inconscientes que revelam a verdadeira personalidade (CEZARETTI, 1989: 26).
Diz Bettelheim (1980: 16):
Para dominar os problemas psicológicos do crescimento - separar decepções narcisistas, dilemas edípicos, rivalidades fraternas, ser capaz de abandonar dependências infantis; obter um sentimento de individualidade e de autovalorização, e um sentido de obrigação moral - a criança necessita entender o que se está passando dentro de seu eu inconsciente. Ela pode atingir essa compreensão, e com isto a habilidade de lidar com as coisas, não através da compreensão racional da natureza e conteúdo de seu inconsciente, mas familiarizando-se com ele através de devaneios prolongados - ruminando, reorganizando e fantasiando sobre elementos adequados da estória em resposta a pressões inconscientes. Com isto, a criança adequa o conteúdo inconsciente às fantasias conscientes, o que a capacita a lidar com este conteúdo. É aqui que os contos de fadas têm um valor inigualável, conquanto oferecem novas dimensões à imaginação da criança que ela não poderia descobrir verdadeiramente por si só. Ajuda mais importante: a forma e estrutura dos contos de fadas sugerem imagens à criança com as quais ela pode estruturar seus devaneios e com eles dar melhor direção à sua vida.
A psicóloga e psicoterapeuta Sophia Rozzana Caracushansky, doutora em Psicologia pela USP (apud CEZARETTI, 1989: 26), afirma que os contos de fadas, usados em terapia, fornecem o estilo e a personalidade. Sua utilidade deu-se primeiramente, pelo criador da Psicanálise, Sigmund Freud, que, a título de estudo, analisou a vida de personalidades como Leonardo da Vinci através do confronto com mitos.
A psicanálise freudiana propõe que, numa análise, confronta-se o aqui e agora do paciente com sua história passada à luz dos contos de fadas. Tal sistemática permite que se reviva a primeira impressão, aquela que causou o trauma, a base do conflito (edipiano) que assemelha-se sempre a um conflito existente em um conto de fadas. A partir da localização do problema, o paciente pode ser tratado adequadamente - explica Sophia Caracushansky (apud CEZARETTI, 1989: 26).
Já dentro do enfoque oferecido pelo psicanalista Carl Gustav Jung (apud CEZARETTI, 1989: 26), a análise terapêutica tem por base os sonhos que fornecem uma indicação precisa da problemática. Analisando os sonhos o terapeuta consegue precisar ou localizar o conflito do paciente, ou o “conto de fadas” que está vivendo, orientando-o para enfrentar os obstáculos à sua realização.
Para a Dra. Sophia, (apud CEZARETTI, 1989: 26) a análise junguiana propicia ao analisando uma visão mais lúcida sobre os bloqueios que impedem sua felicidade, muitas vezes resultantes de um parto difícil, uma rejeição do sexo da criança no nascimento e outros. Além disso, desmascara no indivíduo a “persona”, a fachada social, destinada a agradar e coloca em relevo o eu interior, levando em conta sempre a problemática individual e o momento de vida da pessoa

CONCLUSÃO
A análise de dados obtidos e as reflexões que ela nos levou, remeteu-nos à conclusão que o lidar com a fantasia nos contos de fadas, é um recurso fundamental no processo do desenvolvimento humano porque favorece a comunicação via imagens simbólicas com as dimensões mais profundas da Psiquê. Através dos contos de fadas adentramos magicamente a penumbra misteriosa do nosso inconsciente, condição básica para se conhecer o significado profundo de nossa vida.
Finalmente, cabe apontar que este estudo permite constatar que a força criadora e a sabedoria profunda presentes nos contos de fadas e seu conteúdo arquetípico, pode ajudar os homens a encontrar o caminho para a realização de seus poderes criativos latentes.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
ARAÚJO, Henry Ribeiro Correa. Especificidades da Literatura Infantil. Belo Horizonte: Centro de Educação Permanente Prof. Luiz de Bessa / Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, 1980.
BETTELHEIM, Bruno. A Psicanálise nos contos de fadas. Trad. Arlene Caetano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
CEZARETTI, Maria Elisa. Nem só de fantasias vivem os contos de fadas. Família Cristã. São Paulo, p. 24-26, maio 1989.
FRANZ, Marie-Louise Von. A Interpretação dos Contos de Fada. 3ª ed. Trad. Maria Elci Spaccaquerque Barbosa. São Paulo: Paulus, 1990.
------. A Sombra e o Mal nos Contos de Fadas. São Paulo: Paulinas, 1985.
GIGLIO, Zula Garcia (org). Contos Maravilhosos: Expressão do Desenvolvimento Humano. Campinas: NEP/UNICAMP, 1991.
THOMPSON, Clara. Evolução da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1969.

terça-feira, junho 14, 2005

A Arte de Contar Histórias nas Escolas


As crianças estão sentadas no chão, em círculo. Ouvem a professora, que conta uma história. Umas escutam em silêncio, outras querem interferir. Mas a hora do conto ou da roda de histórias, uma prática cada vez mais disseminada nas escolas de educação infantil e ensino fundamental, chama a atenção de todas elas."

"A roda de histórias não pode deixar de acontecer aqui. As crianças pedem. É um dos momentos mais importantes da rotina delas", diz Michele Sasson Salama, 41, diretora da escola Centro de Estudos e Convivência Infantil Arraial das Cores, que adota a roda para crianças a partir de um ano.
"As histórias possibilitam que as crianças entrem em contato com outros universos e, assim, conheçam melhor os outros e a si próprias", afirma Regina Scarpa, 44, coordenadora pedagógica da ONG Cedac (Centro de Educação e Documentação para a Ação Comunitária). "Elas propiciam à criança um contato com outras realidades, culturas, experiências e visões de mundo, as ajudam a compreender os conflitos internos pelos quais possam estar passando e são, além de tudo, a porta de entrada para o mundo das letras e dos livros."
A imagem de alguém contando "causos" ao redor de uma fogueira é recorrente no imaginário popular, mas, embora esquecida durante algum tempo, tem retornado com força às escolas. "Pais, avós e tios têm cada vez menos tempo para dedicar às crianças, e a arte de contar histórias está se concentrando nas instituições", diz Linice da Silva Jorge, 52, contadora de histórias e mestre em ciência da comunicação pela USP. A maior parte do seu trabalho, hoje, concentra-se na formação de educadores: "Eles estão assumindo a função de contadores de histórias", diz.
Além de fazer parte do imaginário infantil quase naturalmente, a prática de ouvir histórias desperta habilidades importantes para o desenvolvimento das crianças. "Ela remete a exercícios de contemplação e de reflexão, e isso é indispensável num mundo acelerado como o que vivemos", afirma o professor Edmir Perrotti, 58, da Escola de Comunicações e Artes da USP.
As escolas apropriaram-se do ato de contar histórias também porque ele ajuda no trabalho educativo com a diversidade cultural, recomendado pelos PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais), na orientação geral dada pelo Ministério da Educação. Segundo Perrotti, as histórias também são úteis para atingir esse propósito. "Com tantas diferenças socioculturais no país, uma história ou um conto popular tem o poder de aproximar as pessoas. Esse tipo de narrativa simboliza a imensa teia de que é constituída a cultura."
Outra vantagem é o fato de que a criança faz seu primeiro contato com o conhecimento por meio da narrativa. Os especialistas afirmam que, por isso mesmo, o contador de histórias não deve simplificá-las ou mudar as palavras para facilitar a compreensão, mas deixar que a criança tente compreender o seu sentido pelo contexto. "Com isso, ela aprende a diferença entre texto escrito e linguagem oral, informação fundamental para o processo de alfabetização", complementa Michele Salama.
Para Graça Baruzzi, 47, coordenadora pedagógica da Escola Carandá (zona sul de São Paulo), essas atividades são uma maneira de desenvolver o gosto pela aprendizagem. "O contato com as histórias faz com que a criança viaje, fazendo uma leitura do mundo. Cada história proporciona uma nova descoberta." Na Escola Carandá, as crianças ouvem histórias desde o ensino infantil até a quarta série do ensino fundamental —nessa fase, elas também criam e apresentam suas próprias histórias.
Tanto a seleção do tipo de histórias como a forma de contá-las interfere no resultado. Francisco Marques, o Chico dos Bonecos, 44, conta histórias profissionalmente há quase 20 anos. Para ele, que utiliza bonecos, canções e outros apetrechos, contar histórias é um ritual "em que os ouvintes se envolvem não apenas com o rumo dos acontecimentos mas também com o rumor das palavras".

quinta-feira, junho 09, 2005

TRÊS CONTOS POPULARES

Aluísio de Almeida
O barba de ouro e a carantonha
Havia um rei que tinha uma bonita barba de ouro. E um dia ele foi chamado ao quarto da rainha para ver a criança que acabava de nascer. Mas esse barba de ouro era encantado e mau. Assim que viu o lindo menininho, pegou e foi comendo-o à vista de todos. A rainha, quando de novo estava esperando outra criança, combinou com a comadre para lograrem o rei. Arranjaram um coelhinho. Chamaram o barba de ouro e lhe apresentaram o filho. Ah! O rei comeu o coelhinho e gostou. A comadre levou a criança, que era uma menina, para criar por uns camponeses a um outro reinado. A menina foi crescendo, crescendo. Os pais adotivos eram pobres, não sabiam o que fazer com ela. E já estava em ponto de casar. Então mataram uma ovelha, tiraram-lhe a pele e vestiram com ela a mocinha, que ficou que nem um bicho. A madrinha, que era uma fada, pôs-lhe no dedo um anel que era para ela pedir o que precisasse. E subiram as água-furtadas da casa, despediram-se da moça e, dizendo-lhe que se fosse com Deus, pelo mundo, empurraram-na da janela. Aquela coisa foi, foi, ao leu do vento e, enfim, caiu na floresta. O bicho ficou por ali, quieto. Ouvia as cornetas: tu, tu, ru, tu, e latidos dos cães. O rei estava à caça. E então apareceram os caçadores e já levavam a arma à cara, quando o rei ordenou: não atirem! O rei desse reinado era moço e curioso. Achou esquisito aquele bicho que falava como gente. Levou-o para a cozinha do palácio e pôs-lhe o nome de Carantonha. A Carantonha assistia às festas de longe.Uma ocasião ouviu contar, na cozinha, de três grandes bailes que o rei ia dar em seguida, para escolher a sua noiva. Em todo o reinado, era um reboliço fora dos costume e costureiras e alfaiates não tinham mãos a medir. As moças queriam ser princesas. O rei gostava de ver sempre a Carantonha, que lhe prestava serviços, muito humilde. Carantonha segurava a bacia de prata para o rei lavar as mãos.
– Vossa majestade me deixa ir na festa?
- Tu, Carantonha? O rei falou assim e borrifou o rosto dela, brincando. O que é que ela ia lá fazer? Carantonha saiu chorando para o seu cantinho da cozinha. Só então é que se lembrou do anel. Esfregou-o e disse:
- Anel, pelo poder que Deus te deu, quero que me arranjes um vestido cor da terra e uns chapins muito bonitos! – Imediatamente Carantonha viu-se transformada naquela princesa mais bonita e procurou as salas de baile sem que ninguém percebesse.
Opa! Foi um sucesso! O rei dançou com ela e quase só com ela. Perguntou-lhe donde era e Carantonha respondeu:
- Eu sou da terra dos borrifos de água.
E tratou de sair despercebida, para a cozinha, vestindo de novo a pele de ovelha.
No outro dia a criadagem não falava de outra coisa: da nova princesa que aparecera e ninguém sabia de que reinado era. Quando ela foi apresentar a toalha ao rei, pediu-lhe licença para ir ao baile.
O rei atirou-lhe a toalha: - Tu, Carantonha?
Lá foi a moça para o seu cantinho da cozinha, esfregou o anel, e:- Hoje quero um vestido cor de céu.
E já estava como uma princesa. E foi entrando com jeito no salão. Opa! Que sucesso! O rei dançou com ela até a madrugada. Perguntou-lhe donde era.
– Eu? Eu sou da terra do joga a toalha. E tratou de escapulir-se.
No terceiro dia, enquanto o rei lavava as mãos depois do jantar, Carantonha pediu-lhe outra vez a licença para ir ao baile.
– Tu, Carantonha? E o rei deu-lhe um tapinha na cara, brincando.
A moça pediu ao anel o vestido cor do mar, muito mais lindo que os outros. E entrou no salão. Já o rei foi recebê-la e dançaram, dançaram.
– Donde és, bela princesa? Quero casar-me contigo, disse-lhe o rei.
– Eu? Eu sou da terra do leva um tapa.
Mais tarde a Carantonha escapou e foi vestir sua pele na cozinha. Estava acabando o baile. O rei resolveu descobrir o enigma. A princesa acabava de desaparecer. Devia estar ainda no palácio. O rei mandou a polícia ocupar todas as saídas e quando as moças iam saindo examinava uma por uma a ver-lhe o vestido cor do mar e as feições do rosto, que muito bem lembrava. Nada! Ninguém! Examinou depois as camareiras do palácio. Carantonha pediu ao anel o mesmo vestido cor do mar, cobriu-se com a pele e ficou esperando. O rei estava certo que ninguém saíra. E então só faltava examinar a Carantonha. Ele já andava desconfiado. Por isso chegou de repente, puxou a espada e rasgou-lhe um pedaço da pele. Apareceu o vestido
– Ah! É assim? – disse o rei, riscou a pele de alto a baixo e Carantonha apareceu se rindo, nos modos e no porte de uma princesa. Os cortesãos estavam admirados! Que coisa! Mas o rei, meio carrancudo, interpelou a moça.
– Tu estavas zombando de mim? Olha, que eu não sou para brincadeiras. Porque é que me dissestes que era da terra dos borrifos de água?
- Ué! Então vossa majestade não se lembra mais que quando pedi para ir ao baile da primeira noite me esborrifou a água no meu rosto?
- Ah! Tens razão. E porque na segunda noite disseste seres da terra do joga a toalha?
- Porque vossa majestade, quando pedi para ir ao baile, me jogou a toalha.
– Ah! É verdade. E na terceira noite tu erra da terra leva um tapa.
– Pois sim! Vossa majestade, quando lhe pedi para ir ao baile, me deu um tapa, brincando. Em seguida, o rei apresentou a noiva aos cortesãos e convidados, marcou-se o dia das bodas. À hora do banquete, a nova rainha, como era costume, contou uma história. A história dela, a sua infância escondida, a caçada real, a madrinha boa fada. O barba de ouro era falecido, e a rainha mãe dela. Os pais adotivos vieram morar no palácio. Parece que ainda existem, arcadinhos, arcadinhos, mas contentes da vida!
* * *Contou Luís Maria Ferreira, que lhe contou uma tia de seu pai lá por 1880, na Ilha da Madeira. Variante da conhecida Pele de burro com a Maria Borralheira, mais a interposição de um elemento novo, o barba de ouro, para explicar o motivo da transmutação, deixadas em paz as pobres madastras.


Boca calada salva a vida

Havia um velho pai que não cansava de dizer aos filhos:- "Boca calada! Boca calada salva a vida!".
Um dos filhos guardou bem o conselho e saiu pelo mundo. Uma vez ele entrou numa casa, onde viu uma mulher enterrada no chão até a cintura.Ficou com muita vontade de falar, de perguntar porque era aquele castigo. Mas quando ia abrir a boca, lembrava-se do conselho.
O homem da casa, então, começou a provocar o mocinho:
- Pergunte porque ela está enterrada? Vamos fale!
Acontece que esse homem mau matava quem perguntasse. O menino não dizia nada. Por fim, o homem ficou vencido. Ele se ajoelhou perante a mulher, lhe pediu perdão e a desenterrou, dizendo que esse menino era um justo.
* * * Contou Maria Lima Rodrigues, de Itapetininga. Esta "estória" pertence à categoria das histórias de exemplo, moralizantes. Parece ser o resumo de outra mais comprida, que ouvimos em Sorocaba, e de que damos os pontos principais. Título: Pensar três vezes antes de falar qualquer coisa. Enredo: soldado que vai servir o rei. Um ano depois, em vez de soldo, recebe um bolo, para abrir só quando estiver com a família e aquele conselho. De volta, pede pousada numa casa, cujo dono lhe mostra a esposa enterrada até a cintura, mas ele nada pergunta, e, por isso, leva-o até uma sala cheia de armas, dando-lhe a melhor carabina. Explica-lhe: todos os que perguntaram matou-os confiscando-lhes as armas. A mulher estava sofrendo aquele castigo por ser linguaruda. Chegando em casa, o soldado abriu o bolo, e tilintaram muitas moedas de ouro que o rei ali fizera esconder. Era, de fato, um soldado obediente, mesmo depois de dar baixa... E merecia o pago.


A mulher curiosa e o galo
Era uma vez um homem que entendia a linguagem dos bichos. Passeava com a mulher pelo campo. Quando ouviu dois cavalos conversarem, e deu uma bruta risada.A mulher perguntou-lhe porque se ria.
O homem respondeu:
- Por causa da conversa dos dois cavalos. Então, ela começou a instar com o marido para lhe referir a dita conversa.
– Eu bem podia contar a você o que os cavalos conversaram, mas na mesma hora que acabar de contar, morrerei.
– Mas eu quero saber! – retrucou a mulher curiosa.
– Então você quer que eu morra?
- Não sei nada disso! Tem de me contar a conversa dos cavalos!
A discussão durou muitos dias. O pobre homem ficou meio zonzo. Viu que não convencia a mulher e entregou-se.
- Olha, mulher sem coração! – falou ele – eu vou contar a você a conversa dos cavalos, mas melhor aprontar tudo para o enterro! (Dizia isto pensando que a mulher se arrependesse a última hora).
Mandou comprar o caixão, e as velas e assentou-se na rede muito triste. O galo subiu no caixão, bateu as asas e cantou.A cachorrinha, que estava num canto, pensativa, falou ao galo:
- Galo, coração de pedra! Você tem coragem de cantar na despedida de nosso dono?
- Canto e mais que canto. Ele vai morrer, porque é um moleirão e se entregou à mulher. Porque ele não faz como eu, que no terreiro tomo conta de vinte galinhas?
O homem ouvindo isso, criou coragem, de repente. Mandou o empregado trocar o caixão e as velas por um chicote. E depois pegou o chicote e perguntou a mulher:
- Você ainda quer saber a conversa dos cavalos?
- Quero, como não?
- Pois foi assim. E lepte, lepte, lepte, nas costas da mulher, que dava cada grito! Parou um pouco.
– E... você ainda quer saber?
- Quero sim! Continuou a tunda com todas as regras, até que a curiosa ajoelhou e pôs as mãos, murmurando entre soluços.
– Pelo amor de Deus! Chega! Maridinho do meu coração, não quero mais saber da conversa dos cavalos. Nunca mais!

Esta história contou-a em Sorocaba dona Guilhermina Borges. É de encantamento e exemplo ao mesmo tempo. Agora abrindo as primeiras páginas das "Mil e uma noites", vemos que o vizir, pai de Sherazade, ao tentar dissuadi-la das núpcias mortais com o sultão, conta-lhe a história do burro e do boi, cuja conversa um homem ouviu e não quis referir à esposa. Esta resolve fazer greve de fome. O marido convoca os parentes da mulher e nada consegue. Ela quer mesmo saber o que o burro disse ao boi. Quando o homem vai desatar a língua, o cachorro se dirige ao galo censurando-o por ele continuar a viver com as galinhas, como antes. O galo retruca que pode dar conta de cinqüenta, e o homem se deixa dominar por uma. Este pega o chicote e... conta tudo tudo a mulher, que em prantos promete recomeçar a comer e ser boazinha. Os parentes dão os parabéns ao esposo e retiram-se.A pequena diferença do caixão e velas é um colorido local... E o galo cantando no caixão é para modificar o realismo um tanto chocante do conto oriental. É evidente que o nosso conto foi tirado das Mil e uma noites, em época que nunca saberemos dizer, pois o que hoje se conta de boca em boca pode ser composição recente, antiga, antiqüíssima. Pode vir dos mouros da península...A influência das Mil e uma noites é geral em todos os contos de encantamento. Por exemplo, no segundo deste artigo, onde aparece a mulher enterrada até a cintura é, não obstante, vivendo. Ora, logo nas primeiras noites daquele livro imortal, aparece o príncipe, rei das Quatro Ilhas, transformando em mármore, da cintura para baixo. No primeiro conto vê-se, além do encantamento, a influência oriental nos três enigmas de nomes. Cabe aqui uma reflexão de ordem geral. Os contos de encantamento não são incoerentes. O autor recorre ao milagre ou à magia, mas observa certos limites. Na revista Eu sei tudo, lemos a tradução de um conto de autor inglês ou americano, baseando-se nas Mil e uma noites, naquele primeiro trecho em que um pescador pesca um vaso com o selo de Salomão, e do qual sai um gênio. O escritor moderno tira grandes e alegres efeitos do motivo principal, obtendo, por exemplo, que o doutor vá tirar a pressão de um doente e ouça no fone um rádio... Logo adiante, o pescador pede ao gênio que transforme os três empregados do hospício ainda no carro de doidos, em três elefantezinhos cor-de-rosa. A cor de rosa atrapalhou o escritor que num lance feliz, nos mostra os três animais entrando a portaria do hospício e termina esse episódio passando para outro, com uma frase inesperada: "Bem, aí a incoerênciafoi demais".
O povo que conta essas estórias não as inventa. Foi um do povo, um "intelectual", com licença da palavra, que as inventou de acordo com as tendências do povo, e o povo vai transmiti-las de geração em geração.


(Almeida, Aluísio de. "Três contos populares". O Estado de São Paulo, 4 de setembro de 1949)